Relatoria da ONU: Mariana e Brumadinho revelam "farsa da justiça"
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Resumo da notícia
- Informe foi preparado depois de visita de relator ao Brasil, no final de 2019
- Proposta da relatoria é de que inquérito internacional seja estabelecido contra o Brasil
A relatoria da ONU denuncia a impunidade diante de desastre como Brumadinho e Mariana. O documento será alvo de um debate nesta quinta-feira, em Genebra, e o governo brasileiro dará sua resposta. Mas o informe denuncia manobras das empresas, acusa o governo de relaxar a fiscalização depois dos acidentes e ainda alerta que projetos nos locais afetados pelos rompimentos de barragens não atendem às necessidades das famílias das vítimas.
Para o relatório, famílias e amigos "suportam o intenso trauma de recuperar e identificar os corpos de seus entes queridos, reconstruindo e reparando, enquanto sofrem com a sensação persistente de que a justiça não foi servida".
O documento foi preparado pelo especialista da entidade Baskut Tunkat, responsável pelos temas de resíduos tóxicos e direitos humanos e que realizou uma missão ao Brasil no final de 2019. Sua proposta, conforme a coluna revelou na quarta-feira, é de que o Conselho de Direitos Humanos aprove a abertura de uma investigação internacional contra o Brasil pelo comportamento do estado brasileiro diante da crise ambiental e de direitos humanos.
Tunkat concluiu seu mandato em meados do ano e o informe será apresentado pelo novo relator, Marcos Orellana.
"Enquanto o desastre de Brumadinho foi tecnicamente causado pela instabilidade estrutural e liquefação, a verdadeira causa reside na notável falta de supervisão governamental e na conduta criminosa imprudente da Vale", denunciou.
"É espantoso que tal desastre ocorra quatro anos após um fracasso catastrófico da barragem de rejeitos envolvendo a mesma empresa Vale, no mesmo estado de Minas Gerais", disse, numa referência à Mariana.
Procurado, o Itamaraty se manteve em silêncio diante das conclusões do informe. Já a Vale declarou que, "desde o rompimento da barragem em Brumadinho, em janeiro de 2019, a empresa tem cooperado ativamente com as investigações conduzidas pelas autoridades competentes, pelos comitês internos independentes e pelas comissões parlamentares, apresentando todos os documentos e informações solicitados".
"O rompimento da barragem B1 é objeto de várias ações judiciais e, dada sua complexidade, requer uma cuidadosa avaliação pericial, técnica e científica sobre as causas da ruptura antes que sejam apontadas responsabilidades. A Vale confia no trabalho diligente das instituições e do sistema judicial brasileiro", disse a empresa.
De acordo com a companhia, ela permanece "firme em seus propósitos de reparar integralmente os danos causados pelo rompimento da barragem e de garantir a segurança das pessoas e dos nossos ativos". "A empresa já desembolsou com a reparação de Brumadinho e a descaracterização de barragens mais de R$ 11 bilhões", disse. "Desse valor, R$ 4,1 bilhões foram destinados ao pagamento de indenizações e do auxílio emergencial mensal. No total, quase 8 mil pessoas já foram indenizadas. Além disso, a empresa tem em seu balanço provisões no valor de R$ 18,6 bilhões para a compensação, reparação e acordos referentes a Brumadinho e para a descaracterização de suas barragens", completou.
De acordo com o relator, porém, "em vez de reforçar os controles das indústrias extrativistas após o desastre de Mariana, o governo brasileiro inexplicavelmente acelerou o licenciamento e não conseguiu assegurar o monitoramento e supervisão adequados das operações".
De acordo com o informe, uma investigação do Congresso brasileiro revelou evidências de que o CEO da Vale foi informado em um e-mail anônimo semanas antes do incidente que as barragens estavam no seu limite.
"Uma investigação independente encomendada pela Vale confirma que a Vale influenciou avaliadores terceiros, a Potamos e a empresa alemã TUV SUD, a certificarem falsamente que a barragem estava segura", destacou.
"Da mesma forma, com o desastre de Mariana, engenheiros alertaram a BHP, a Vale e a Samarco sobre a instabilidade seis meses antes do colapso, mas foram dispensados e as precauções necessárias não foram tomadas", disse.
A avaliação do informe é de que, hoje, existam entre 40 e 1000 barragens de rejeitos em risco de desmoronamento no Brasil. Quarenta e cinco foram classificadas como as mais vulneráveis em 2017, das quais 25 pertencem a entidades públicas, e quase 1.800 barragens estão em alto ou moderado risco de ruptura.
"Farsa da Justiça"
A avaliação da ONU é de que o Brasil enfrenta desafios no cumprimento de suas obrigações de garantir que as vítimas de exposição tóxica realizem seu direito de acesso à justiça.
"Falta responsabilidade e reparações para as vítimas, onde em muitos casos ninguém é responsabilizado por crimes ambientais inquestionáveis, ataques e assassinatos", declarou.
"Após os desastres de Mariana e Brumadinho, nenhum executivo corporativo da Vale, BHP ou Samarco foi condenado por conduta criminosa, uma farsa de justiça sugerindo que alguns no Brasil estão de fato acima da lei", denunciou.
"A incapacidade de proporcionar um remédio eficaz às vítimas do desastre de Mariana é emblemática do que enfrenta aqueles que buscam justiça e remédio contra as indústrias extrativas", constatou.
Desde 2016, o Relator Especial da ONU se reuniu com a BHP e a Vale em inúmeras ocasiões para discutir os muitos problemas com sua abordagem para remediar o caso. "Após o desastre, a BHP e a Vale correram para criar a Fundação Renova para proporcionar às comunidades afetadas uma resposta eficaz. Infelizmente, o verdadeiro objetivo da Fundação Renova parece limitar a responsabilidade da BHP e da Vale, em vez de fornecer qualquer aparência de remédio eficaz", acusa.
"As deficiências institucionais estão bem documentadas na literatura e no litígio. Hoje, nenhum dos 42 projetos está no caminho certo. Mais de 200.000 indígenas e outros membros da comunidade afetados, e outros procuraram recursos legais contra a BHP e a Vale em outros países, incluindo o Reino Unido, para garantir uma solução eficaz", explica.
Mas a responsabilidade também é do estado. "Enquanto lições foram tiradas do problemático modelo Renova, a ocorrência de um desastre de represa de tal magnitude envolvendo a mesma empresa, a Vale, é prova do fracasso do Estado em garantir a não repetição", disse.
Recomendações
Entre as recomendações, a ONU sugere que o governo estabeleça uma comissão de reconciliação e verdade e que reformas sejam implementadas para "garantir que executivos de empresas sejam sempre responsabilizados por crimes ambientais e ocupacionais, incluindo a Vale, BHP Billiton, Samarco, Tuv Sud, e outras relacionadas por sua falta de ação em Brumadinho e Mariana".
O texto ainda sugere uma reforma da estrutura de governança da Fundação Renova para substituir toda influência da Vale, da BHP e da Samarco por especialistas independentes e livres de conflitos.
Também se pede a disponibilização dos recursos necessários para o reassentamento da comunidade de Piquiá de Baixo, e a emissão formal de um pedido de desculpas pelo Governo, pela Vale e por outras empresas.
No que se refere ao derramamento de petróleo de 2019, a relatoria sugere a criação de uma investigação independente e transparente sobre o papel da Petrobras, além de proporcionar uma resposta para os pescadores que continuam a sofrer com a perda de seus meios de subsistência e os impactos do derramamento de petróleo de agosto de 2019 na saúde mental e física.
Posicionamento
A Fundação Renova, entidade responsável pela mobilização e execução da reparação dos danos provocados pelo rompimento da barragem de Fundão, emitiu um comunicado diante dos comentários do relator da ONU.
De acordo com a entidade, "até 31 de julho de 2020, foram destinados R$ 9,2 bilhões para as ações integradas de recuperação e compensação. Cerca de R$ 2,57 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais para cerca de 321 mil pessoas.
Mais de 1.600 obras foram executadas ao longo de todo o território atingido. Os reassentamentos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, em Mariana (MG), ganham forma nas primeiras casas sendo concluídas, nas ruas pavimentadas, bens coletivos em etapa final, vias iluminadas e obras de infraestrutura avançadas. As obras foram adaptadas ao cenário da COVID-19. Cerca de 470 famílias participam ativamente do processo.
Ações ambientais -A água do rio Doce pode ser consumida após passar por tratamento convencional em sistemas municipais de abastecimento. É isso que indicam os mais de 3 milhões de dados gerados anualmente pelo maior sistema de monitoramento de cursos d'água do Brasil, criado pela Fundação Renova em 2017 para monitorar o rio Doce.
São 92 pontos de monitoramento distribuídos no rio Doce e na zona costeira. Entre esses pontos estão 22 estações automáticas, que geram informações em tempo real. Um total de 80 parâmetros físicos, químicos e biológicos são analisados na água e 40 nos sedimentos. São mais de 300 pontos de monitoramento de água para consumo humano em 30 municípios.
Em 2020 está previsto um orçamento de R$ 48 milhões para ações de continuidade dos programas de monitoramento de água e sedimentos da bacia do rio doce e zona costeira e estuarina. Cinco órgãos participam desse trabalho por meio de um grupo técnico de acompanhamento: Agência Nacional de Águas (ANA), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBIO), Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam) e Agência Estadual de Recursos Hídricos do Espírito Santo (AGERH).
Além disso, foram recuperados 113 afluentes, pequenos rios que alimentam o alto do rio Doce. Esses afluentes praticamente desapareceram da paisagem após o rompimento da barragem de Fundão e, por isso, tiveram que ser totalmente redesenhados com base em informações de geoprocessamento. O terceiro ano do Programa de Recuperação de Nascentes, ação fundamental para revitalização da bacia hidrográfica do rio Doce, está mobilizando, engajando e formando produtores rurais para que eles atuem na recuperação de outras 500 nascentes, totalizando 1.554 em Minas Gerais e no Espírito Santo. O objetivo do programa é recuperar 5.000 nascentes em dez anos.
A Fundação também disponibilizou R$ 500 milhões para projetos de saneamento para os 39 municípios impactados. Ao longo da bacia do rio Doce, 80% do esgoto doméstico segue para os rios sem tratamento, e grande parte do resíduo sólido coletado vai para os lixões. Os recursos começaram a ser liberados em abril de 2019.
Na área de restauração ambiental, serão reflorestados 40 mil hectares de Mata Atlântica na bacia do rio Doce. Até junho de 2020 foram plantados 800 hectares nos municípios de Governador Valadares, Coimbra, Periquito e Galileia, em Minas Gerais; e Colatina, Marilândia e Pancas, no Espírito Santo. A área equivale a 800 campos de futebol. As 1 milhão mudas que são utilizadas no projeto foram produzidas em viveiros localizados na própria região. No total serão investidos R$ 1,1 bilhão no projeto".
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