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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Biden e Putin se reúnem para desenhar rascunho do mundo pós-pandemia

1.jun.2021 - O presidente dos Estados Unidos Joe Biden em discurso na cidade de Tulsa, em Oklahoma - Mandel Ngan/AFP
1.jun.2021 - O presidente dos Estados Unidos Joe Biden em discurso na cidade de Tulsa, em Oklahoma Imagem: Mandel Ngan/AFP

Colunista do UOL

16/06/2021 04h00

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Resumo da notícia

  • Cúpula em Genebra será marcada por lista longa de desentendimentos e tensões
  • Ocidente quer neutralizar uma eventual aliança entre Rússia e China e espera convencer Putin a não se somar aos planos de Pequim
  • Biden e Putin terão sobre a mesa temas como Ucrânia, segurança cibernética, direitos humanos, situação de opositores e armas nucleares

Da janela da mansão que estão se reunindo nesta quarta-feira, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente dos EUA, Joe Biden, podem ver ao outro lado do lago de Genebra o prédio do que foi a sede da Liga das Nações. Também conseguirão avistar a sede atual da ONU.

Ambas instituições foram resultados de um esforço de grandes potências que, na época, redesenharam o mundo após a Primeira e a Segunda Guerra Mundial.

Agora, está sendo mais uma vez o momento de líderes tentar desenhar o que pode ser a base de um mundo pós pandemia. Não por acaso, no centro da sala do encontro e entre os dois líderes, em Genebra, um globo terrestre deixava explícito que o que está em jogo é o futuro da agenda mundial.

Não há uma expectativa de um acordo. Mas qualquer que seja o resultado do encontro de Genebra, diplomatas acreditam que o diálogo indicará uma definição do rumo da disputa pela hegemonia regional e no planeta. "Putin saberá quais são os limites e Biden saberá até que ponto haverá espaço para um diálogo", afirmou um negociador envolvido no processo de preparação do encontro.

"A partir disso, são as fronteiras do mundo pós-pandemia que começam a ser organizadas", concluiu.

A lista de desentendimentos é extensa e o próprio chefe da OTAN, Jens Stoltenberg, deixou claro que a relação entre o Ocidente e a Rússia está em seu ponto mais baixo. Hoje, os americanos não contam com um embaixador em Moscou e os russos estão com seu posto sem ser ocupado em Washington.

Mas a crise vai muito além do protocolo e Biden diz que vai estabelecer "linhas vermelhas". Do outro lado, Putin se mostra desafiador e o Kremlin alerta que a conversa será "difícil".

Autoridades russas estão sob sanções americanas pelas ações na Ucrânia, um conflito congelado e não resolvido. Para americanos e aliados europeus, a crise ucraniana é a prova de que, se não for barrado, Putin avançará com seus interesses, independente do direito internacional.

A ação dos russos para desestabilizar o Ocidente por meio da proliferação de desinformação também estará no centro do debate. O Kremlin é acusado de ter montado uma verdadeira operação de milícia digital para minar eleições em democracias, minar a confiança nas instituições e enfraquecer o bloco ocidental.

Biden também promete levar à mesa de negociações com Putin a situação de opositores ao regime russo. Alexey Navalny, hoje detido, é apenas um deles e a Casa Branca já deixou claro que sua morte "afetaria" a relação da Rússia com o resto do mundo. De uma forma mais ampla, é a questão dos direitos humanos que será exposta, incluindo liberdade de expressão e o papel de jornalistas.

Apesar de a cidade inteira ter sido transformada para a cúpula e de escolas, restaurantes e lojas fechadas, um grupo de manifestantes conseguiu erguer em uma ponte um cartaz no qual questionava o envenenamento de Navalny. "Nenhuma investigação, senhor Putin?", dizia. Diante da imprensa para a foto oficial, Putin ainda teve de ouvir de uma jornalista: "por qual razão o senhor teme Navalny?". O russo não respondeu.

Putin também tem suas linhas vermelhas e limites a apresentar aos americanos. Moscou não quer a Ucrânia aderindo à OTAN e nem soldados ocidentais no país. O Kremlin também critica a interferência da Europa e EUA na crise envolvendo o presidente Alexander Lukashenko, em Minsk. Acordos nucleares e a pandemia também estarão no debate.

Antes de as portas se fecharem para a reunião, Putin afirmou que os dois países têm "temas acumulados" e que exigem "reuniões de alto nível". "Espero que sejam produtivos", declarou. Biden completou: "é sempre melhor encontrar cara a cara".

Biden quer mostrar que Ocidente está unido

O presidente americano indicou que não quer elevar a tensão com Moscou. Mas deixou claro que irá responder se Putin mantiver suas táticas. Para chegar à negociação com força, os americanos fizeram questão de que o encontro com Putin fosse realizado apenas depois que a nova administração de Washington tivesse costurado de novo as relações com seus aliados.

Em quatro anos de governo Trump, esses pactos foram questionados e estiveram ameaçados. Agora, no G7, Biden prometeu apoiar o multilateralismo. Ele ainda encerrou com a UE disputas comerciais históricas e, na OTAN, o novo chefe da Casa Branca desfez o discurso de Trump que chegou a ameaçar deixar o bioco militar. Sua mensagem foi clara: o governo americano está comprometido com a aliança.

Mas Putin sabe que pode ter um papel decisivo e, portanto, qualquer aproximação terá de ocorrer sob suas condições. Putin, segundo fontes diplomáticas russas, sabe que o Ocidente quer e precisa de uma aproximação com o Kremlin para impedir uma aliança entre Moscou e Pequim, considerado como a maior ameaça nos próximos 30 anos.

Neutralizado, portanto, Putin pode ajudar o Ocidente a reconstruir o mundo pós pandemia, num questionamento às ambições de hegemonia da China.

Mas, para diplomatas europeus, o presidente russo tem seus motivos para aceitar conversar. Moscou hoje teme a ambição chinesa sobre o vasto território russo, vazio e rico. Conter a China, portanto, pode ser um raro ponto em comum para o Ocidente e o Kremlin. Mas tudo dependerá de como a Rússia será tratada e como manterá sua postura de ator chave no cenário internacional.

"Não há qualquer garantia de que haja um entendimento", admitiu um diplomata americano. De fato, os organizadores da cúpula sequer prevêem uma coletiva de imprensa conjunta ao final. O encontro deve durar entre quatro e cinco horas, sem qualquer previsão de um almoço para criar um sentimento de maior intimidade.

Não é a primeira vez que democratas tentam uma aproximação com Putin. No início do governo de Barack Obama, a então secretária de estado Hillary Clinton se reuniu também em Genebra para dar um "restart" na relação com o Kremlin.

Naquele dia, um enorme mal-estar foi causado quando a delegação americana entregou aos russos um presente. Era um botão vermelho com a palavra que deveria significar, em russo, "recomeço". Mas, por um erro ortográfico, a palavra inscrita era outra: "superaquecido".

A esperança é de que, desta vez, ninguém se perca na tradução.