Topo

Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Olinda, o berço do Brasil do século 21?

Em 31 de outubro de 1975 à tarde, em frente à Catedral da Sé, em São Paulo (SP). Aproximadamente oito mil pessoas assistiram ao culto ecumênico, na Catedral da Sé, em memória do jornalista Vladimir Herzog, que morreu em 25 de outubro de 1975 nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), do Segundo Exército - Folhapress
Em 31 de outubro de 1975 à tarde, em frente à Catedral da Sé, em São Paulo (SP). Aproximadamente oito mil pessoas assistiram ao culto ecumênico, na Catedral da Sé, em memória do jornalista Vladimir Herzog, que morreu em 25 de outubro de 1975 nas dependências do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna), do Segundo Exército Imagem: Folhapress

Colunista do UOL

19/02/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Nesta semana, a Câmara de Vereadores de Olinda (PE) aprovou uma corajosa lei que proíbe homenagens em monumentos e vias públicas a escravocratas e pessoas ligadas à ditadura militar.

Pouco? Talvez. Mas certamente um passo fundamental para humanizar o Brasil.

Acorrentada por versões que convinham ao poder, nossa história teve de lutar para que fosse ensinada em sua complexidade: repleta de sangue, violência, estupros, tortura e injustiça.

Ao nos deparar com a data dos 200 anos da Independência, qualquer comemoração apenas tem sentido se for acompanhada por um processo de conscientização de como chegamos até aqui, um debate franco sobre a dívida social construída nesses séculos, o reconhecimento de quem ganhou e quem perdeu e que caminhos desejamos seguir.

Olhar o passado é pré-condição para erguer um futuro. E, em Olinda, um sopro desse caminho pode ter sido dado.

Em outras partes do mundo onde sociedades tentaram lidar com seus calabouços, a rota para a democracia e a paz jamais foi apenas marcada pela Justiça ou por processos legais, ainda que tenham sido fundamentais e indispensáveis.

Os responsáveis precisam pagar pelos crimes que cometeram. Mas a transformação do processo de memória também passa por descolonizar nossa geografia, nossas referências e nomes que repetimos sem nem mais pensar.

Num informe publicado pelo relator da ONU para o direito à verdade, Fabian Salviolli, diversos exemplos apontam que superar um passado de crimes precisa ir além de cortes e decisões judiciais.

Durante seus 25 anos de existência (1993-2017), o Tribunal Internacional para a Ex-Iugoslávia conseguiu julgar e condenar muitos criminosos, incluindo chefes de Estado, ministros e generais. Ainda assim, não foi possível mudar a narrativa estabelecida pelas máquinas de propaganda criadas durante a guerra nas sociedades da ex-Iugoslávia, nem refrear o negacionismo e o discurso do ódio, ainda vigorosamente ecoados hoje.

Uma das principais lições do Tribunal foi dura: é "pura fantasia" achar que superar um passado de crimes e ganhar apoio popular ocorrem apenas "inundando o público com informações técnicas sobre o mandato, procedimentos e atividades do mecanismo de justiça transicional".

Para o relator da ONU, a superação de um período criminoso na história de uma sociedade também envolve ir além dos tribunais.

Sem a memória do passado, não pode haver direito à verdade, justiça, reparação ou garantias de não recorrência. Por esta razão, os processos de memória ligados a graves violações dos direitos humanos e do direito humanitário internacional constituem um pilar da justiça transitória.

Para a ONU, algo similar ocorreu com o nazismo na Alemanha. Ainda que Nuremberg tenha sido fundamental para trazer um sinal de Justiça a um massacre de proporções inéditas, o informe destaca o papel fundamental da publicação de milhares de livros, de milhares de visitas de estudantes a campos de concentração e das dezenas de documentários e séries dramáticas de televisão produzidos sobre o Holocausto.

"Tudo isso foi essencial para a tarefa de reconhecer os crimes cometidos pelos nazistas e de transformar democraticamente a sociedade", disse.

"Os crimes do passado devem ser adequadamente tratados a fim de construir uma sociedade democrática, pluralista, inclusiva e pacífica", insiste o informe oficial da ONU.

"O reconhecimento de crimes de guerra e violações em massa dos direitos humanos é essencial para restaurar a dignidade das vítimas, permitindo à sociedade recuperar a confiança e iniciar um processo de reconciliação. O não reconhecimento e punição dos crimes e violações ocorridos leva à negação e perpetua e legitima a violência", insiste.

Ao assumir a tarefa de dar um basta a homenagem a criminosos, as vereadoras e vereadores de Olinda sinalizam ao resto do Brasil que, enquanto a Justiça não é feita, o trabalho de conscientização não pode parar.

Reinventar o futuro começa por olhar e lidar com o passado. Um sinal de que o processo civilizatório está vivo, como um sentimento de uma insurreição das consciências para, finalmente, dar um basta às discriminações e crimes que continuam a ocorrer. Um ato para ser acompanhado, acima de tudo, por políticas públicas que corrijam suas injustiças e reparem suas vítimas.

De Olinda, ouvimos os ecos das correntes sendo marteladas num processo longo de busca por liberdade. Que seu exemplo de arrancar as algemas de nosso imaginário coletivo contamine outras cidades.