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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Rússia repete na Ucrânia táticas de destruição usadas na Síria

Colunista do UOL

14/03/2022 04h00

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O cerco às cidades ucranianas, o bombardeio indiscriminado da população civil e a proposta da criação de corredores humanitários têm marcado os primeiros dias da guerra na Ucrânia. Mas, para especialistas, diplomatas e serviços de inteligência, a tática russa não é nova. Nos últimos anos, Moscou usou exatamente a mesma estratégia para ajudar o regime sírio a se livrar de terroristas e de opositores, reconquistando cidades e regiões.

A entrada da Rússia na guerra da Síria, em 2015, mudou o curso da história do Oriente Médio. Se o governo americano acreditava que poderia derrubar Bashar Al Assad, nos primeiros anos do conflito, alimentando grupos da oposição, a dinâmica do conflito mudou radicalmente quando Assad conseguiu o apoio de Vladimir Putin.

O Kremlin, oficialmente, faria parte de uma coalização internacional para frear o avanço do Estado Islâmico, que já tinha dominado um terço do território sírio e ameaçava desestabilizar todo o Oriente Médio. O envolvimento russo deu resultados, principalmente com a ajuda da Força Aérea.

Mas, se a ação de Putin era oficialmente apenas para derrotar terroristas, logo Damasco classificou todos os grupos de oposição como terroristas, justificando ataques. Assad, até hoje, deve sua sobrevivência ao Kremlin.

Para fontes envolvidas nos serviços de inteligência da Europa, o que se vê agora na Ucrânia é a repetição da mesma tática. A Síria, assim, acabou sendo um ensaio geral para armas e táticas russas.

Ao longo de vários anos, a reconquista de cidades como Aleppo ou na região de Idlib foi conduzida por um cerco militar, acompanhado por ataques aéreos. Em dez anos, 300 mil pessoas morreram na Síria, vítimas de grupos armados, terroristas e governos.

Agora, situações como a de Mariupol, Kharkiv e Odessa seguem um padrão similar, com o potencial de causar enormes perdas entre civis. Kiev, segundo o governo ucraniano, também estaria sendo alvo de um cerco.

Outra tática que parece se repetir é o ataque contra escolas e hospitais, numa ofensiva para aterrorizar civis e gerar um êxodo em massa. Numa declaração neste domingo, a OMS acusou a Rússia de atacar mais de 30 centros de saúde na Ucrânia.

"Pedimos a cessação imediata de todos os ataques aos cuidados de saúde na Ucrânia", disse Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

"Estes terríveis ataques estão matando e causando sérios ferimentos a pacientes e trabalhadores da saúde, destruindo a infraestrutura vital da saúde e forçando milhares a renunciar ao acesso aos serviços de saúde apesar das necessidades catastróficas", alertou.

"Atacar os mais vulneráveis - bebês, crianças, mulheres grávidas, e aqueles que já sofrem de doenças e enfermidades, e trabalhadores da saúde arriscando suas próprias vidas para salvar vidas - é um ato de crueldade inconcebível", afirmou.

Pesadelo

Nesta segunda-feira, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha também soou o alerta, diante do impacto das táticas russas. "O povo de Mariupol está vivendo um pesadelo há mais de uma semana e se encontra em uma situação de emergência real", disse o presidente do CICV, Peter Maurer.

Segundo a entidade, centenas de milhares de residentes enfrentam agora uma escassez extrema ou total de bens de primeira necessidade como alimentos, água e medicamentos. "Pessoas de todas as idades estão se abrigando em abrigos subterrâneos não aquecidos, arriscando suas vidas ao se aventurarem do lado de fora para encontrar comida e água. Cadáveres de civis e combatentes ainda estão presos sob os escombros ou deitados a céu aberto, exatamente onde caíram", disse. "Os feridos graves, assim como os doentes crônicos com doenças debilitantes, não podem ser tratados. O sofrimento humano é simplesmente imenso", alertou Maurer.

"O barulho da luta é onipresente. Os edifícios são atingidos e estilhaços caem em todos os lugares. Esta é a situação para todos os habitantes", explica Sasha Volkov, oficial de Operações em Mariupol.

Na sexta-feira, a ONU também alertou que tais ataques, inclusive contra escolas, poderiam constituir crimes de guerra. Os russos negam que estejam atacando civis, e chegam a afirmar que hospitais ucranianos estavam sendo usados como base para soldados de Kiev, versão desmentida.

No caso de Damasco, informes realizados pela Comissão de Inquérito sobre os crimes na Síria apontam para o mesmo padrão. Para a entidade Syrian Archive, quase 300 hospitais foram atacados na Síria desde 2011.

Diante da destruição de infraestrutura civil, o resultado é o deslocamento em massa de milhões de pessoas. Na Síria, cerca de 6 milhões deixaram o país. Na Ucrânia, o número de refugiados já chega a 2,5 milhões.

Sem civis, portanto, as cidades se transformam em campos de batalhas entre russos e os exércitos locais. Uma vez encerrada a reconquista, muitos dos locais tiveram de ser completamente reconstruídos, numa operação que pode durar anos.

Para Marwan Safar Jalani, que pesquisa a estabilização pós-conflito e a recorrência da guerra na Universidade de Oxford, a guerra na Ucrânia apenas está ocorrendo por conta do silêncio da comunidade internacional diante dos crimes da Rússia na Síria.

"Com flagrante impunidade, a Rússia cometeu crimes de guerra sob a vigilância mundial, ao mesmo tempo em que vetou as resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas que poderiam ter impedido o derramamento de sangue na Síria", disse.

"Hoje, a carta branca de que Putin desfrutou na Síria o encorajou a repetir uma guerra semelhante contra os ucranianos, com relatos de alvos civis sendo bombardeados, incluindo escolas, hospitais e áreas residenciais em toda a Ucrânia", alertou.

"Assim como a ausência de uma zona de interdição de voo na Síria sinalizou à Rússia e ao regime sírio que eles não seriam impedidos de bombardear civis sírios, a rejeição pela Otan, em 4 de março, da proposta de Kiev de uma zona de interdição de voo sobre a Ucrânia dá luz verde para que a Rússia tenha como alvo os civis", insiste.

"Durante a invasão da Ucrânia, os sírios estão dizendo repetidamente à comunidade internacional, "Nós avisamos " - que os crimes cometidos na Síria seriam cometidos em outro lugar se ficassem impunes."

O mesmo argumento é lançado pelo escritor sírio e dissidente político Yassin al-Haj Saleh. "A análise de Saleh lança luz sobre uma implicação aterrorizante da atitude de Putin em relação à Ucrânia", destaca Jalani.

"Da mesma forma que Putin e o regime de Assad consideram os sírios pró-democracia como terroristas imperdoáveis merecedores de morte e destruição, Putin acredita que a Ucrânia e os ucranianos não merecem um Estado legítimo e independente", destacou.

O temor de uma parcela de diplomatas internacionais é de que os corredores humanitários que estão sendo negociados neste momento na Ucrânia sirvam apenas de moeda de troca. A população seria poupada, em troca de um sinal verde para que os russos possam travar uma batalha por cada cidade ucraniana.