Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Quem morre de frio morre assassinado
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Há cerca de dez anos, um estudo publicado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) me causou náusea. Naquele momento, gastava-se US$ 2 bilhões na pesquisa por remédios que tratassem da calvície. Para a malária, que assola regiões inteiras do mundo, mata 600 mil pessoas por ano e atinge outras 200 milhões, os investimentos eram de apenas US$ 1,8 bilhão.
Em 2020, enquanto os americanos gastavam US$ 36 bilhões em comida para seus animais de estimação, a OMS implorava por um quinto desse valor para comprar vacinas contra a covid-19 para os países mais pobres do mundo.
Naquele mesmo ano, os investimentos em pesquisa e desenvolvimento para encontrar tratamentos para 17 doenças negligenciadas chegavam a US$ 3,9 bilhões, segundo a OMS. Essas doenças atingem 1,7 bilhão de pessoas pelo mundo, sempre nos rincões mais miseráveis do planeta. Mas os recursos destinados a elas são inferiores à receita da próxima Copa do Mundo, no Qatar.
Desde meados do século 20, algumas das doenças mais letais do mundo deixaram de ser alvo das pesquisas das grandes multinacionais que consideraram como pouco lucrativo atuar em áreas como malária, doença de Chagas e outras doenças hoje concentradas nas regiões mais pobres do mundo. Os investimentos deixaram de ser feitos por cálculos econômicos. O dinheiro investido não resultaria em lucros, já que os compradores seriam algumas das sociedades mais miseráveis do planeta.
Descobri, viajando por alguns dos locais que não estão no mapa do poder, que não existem essas tais "doenças negligenciadas". O que existe é a triste categoria de povos negligenciados.
Abandonados por não serem relevantes para ninguém no poder. Por não significar voto. Por não representarem sequer um mercado consumidor. Por serem simplesmente descartáveis, tanto para o capitalismo e como ao regime no comando. Morrem por falta de remédio ou por falta de direitos?
Nesta noite congelada em São Paulo e em outras cidades do Brasil, não é o frio que ameaça. Mas o abandono e a ausência de estado.
Um corpo que treme numa calçada no centro da cidade sente, em seus ossos, o descaso na forma de frio. O que está congelado é sua cidadania.
Hoje, quem morre de frio morre assassinado.
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