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Jamil Chade

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Carta ao presidente de Portugal: ajude-nos a resgatar nossa independência

Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, em encontro com Bolsonaro em Brasília - Marcos Corrêa/PR
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal, em encontro com Bolsonaro em Brasília Imagem: Marcos Corrêa/PR

Colunista do UOL

07/08/2022 04h00Atualizada em 08/08/2022 10h21

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Prezado presidente Marcelo Rebelo Sousa,

Sempre fui um admirador de sua postura franca, mesmo não concordando com todo seu posicionamento político. Mas isso, numa democracia, jamais deveria ser motivo de confronto. E é justamente por conta da fragilidade de nossa democracia que lhe escrevo esta carta.

O senhor e outros chefes de estado da comunidade lusófona foram convidados pelo presidente Jair Bolsonaro para as comemorações do 7 de Setembro.

Mas, como o senhor deve já saber, sua presença será amplamente manipulada. Não haverá uma comemoração de nossa independência. Mas um sequestro da data pela extrema direita para justificar mais um triste capítulo de nossa história.

A bandeira brasileira estará por todas as partes, orgulhosamente exposta e sorrateiramente sequestrada enquanto parte de nós estávamos distraídos. Mas a verdade, presidente, é que entregamos nossa soberania. Quem está hoje no poder no Brasil prestou continência a outras bandeiras, aceitou entendimentos comerciais que prejudicavam setores inteiros da economia nacional, ameaça esfarelar o Estado de direito e se submeteu às orientações de movimentos de extrema direta pelo mundo.

Se é verdade que da traição nascem poemas, apenas posso imaginar que teremos uma era de ouro na literatura brasileira nos próximos anos. Afinal, como caracterizar o atual governo senão como um ato de traição coletiva, usando os instrumentos da democracia para desmontá-la.

Duzentos anos depois de romper com Portugal, o Brasil vê também sua soberania corroída pelo crime organizado, que assume os rincões mais distantes do país e os transforma em estados paralelos, sob os aplausos de cúmplices vestidos de autoridades. O estado milícia ganha terreno e também declara sua independência.

Uma data como a de 2022 deveria ser a ocasião para que façamos, de forma conjunta, um exame de consciência, uma busca por reconhecimentos mútuos de fracassos e êxitos. E, acima de tudo, para que tenhamos a coragem de traçar caminhos para levar "novos mundos ao mundo", como vocês diriam.

Neste caso, esse caminho seria o de levar a independência aos milhões de brasileiros que continuam escravizados pela fome, estuprados pela miséria, açoitados pela ausência de estado e cegos pela frustração de não encontrar "na linha fria do horizonte" os "beijos merecidos da Verdade".

António Ramos Rosa falava da "pátria de metamorfoses incessantes" ao se referir ao mar. Mas essa é uma definição que bem poderia ser usada à brasilidade. E, nestas revoluções permanentes, vivemos hoje uma encruzilhada. A escolha não é difícil. Mas ela exige a coragem que seus navegantes nos ensinaram a ter ao longo de séculos para enfrentar os demônios mitológicos cartografados em mapas líricos.

E o senhor, como num conto do realismo mágico latino-americano, é convidado a fazer parte deste momento.

Ouvi dizer que a FAB vai trazer ao Brasil o coração de dom Pedro que está preservado em vossas terras e não entrou em combustão nos incêndios que devastaram nosso acervo do passado —e nosso sonho de futuro. Se aqui eu puder lhe pedir algo só entre nós, aproveite e apronte uma boa piada com o governo brasileiro. Sei que outra característica sua é o bom humor. Então, num pacotinho bem escondidinho, "manda novamente algum cheirinho de alecrim".

Alguns de nós entenderemos. Seria giro.

Nossa história comum se confunde com sangue e arte. Agradeço-lhe para sempre por ter-nos exportado a palavra saudades, pela poesia, pelo gosto do mar, pela mesa generosa. Agradeço um pouco menos por ter-nos ensinado o que é a burocracia.

Mas este não é o momento de ser tão ingrato. "Não esqueças quem te amou e em tua densa mata se perdeu e se encontrou."

Prezado presidente,

É decisão soberana do senhor pisar ou não em terras brasileiras neste momento. Uma ausência seria tão presente quanto uma viagem cruzando o mar do destino que nos une. Uma presença responsável seria tão épica quanto abrir um novo capítulo neste destino que busca um porto seguro para a democracia.

Apenas lhe peço, humildemente, muita sabedoria e um compromisso com nossa independência. Desta vez, não me refiro à independência em relação aos colonizadores. Mas de nossos próprios demônios. Os mitológicos e os reais.

Saudações democráticas,

Jamil Chade