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Jamil Chade

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Sob Bolsonaro, indígenas enfrentam "guerra por sobrevivência"

O indígena Willis Fernandes em frente à cova do pai, morto em operação policial em Amambai (MS) - Jamil Chade/UOL
O indígena Willis Fernandes em frente à cova do pai, morto em operação policial em Amambai (MS)
Imagem: Jamil Chade/UOL

Jamil Chade*

Colunista do UOL, em Amambai (MS)

16/08/2022 04h00

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As armas estão em todos os lados. O clima é pesado. Não chove há semanas. O silêncio nas profundezas do território brasileiro é apenas interrompido por rajadas de vento e o barulho de caminhões carregando commodities que vão alimentar a expansão da China.

O estado? Um grande ponto de interrogação. Quase quatro anos depois do início do governo Jair Bolsonaro (PL), os indígenas vivem o que eles mesmo chamam de "guerra". A guerra pela terra e pela sobrevivência diante de um extermínio que mata por suicídio antes dos 20, de emboscada antes dos 30, da falta de terra antes dos 40 ou de veneno dos agrotóxicos um pouco por dia.

A reportagem do UOL percorreu centenas de quilômetros no final de julho entre as diferentes terras indígenas e reservas em Mato Grosso do Sul, uma das áreas mais perigosas do país e, ironicamente, um dos celeiros de exportação do agronegócio.

A região é, em grande parte, terra guarani-kaiowá. Há cerca de 150 anos, os indígenas ocupavam uma área próxima a 40 mil quilômetros quadrados, ignorando a fronteira entre Brasil e Paraguai. Colocados em oito reservas de no máximo 36 quilômetros quadrados criadas entre 1915 e 1928, eles foram vítimas de um deslocamento forçado que transformou sua história.

Mato Grosso do Sul tem a segunda maior população indígena do Brasil, com cerca de 85 mil pessoas. A distribuição de terras, porém, está entre as mais desiguais do país: segundo dados do Cadastro Ambiental Rural, as grandes fazendas (com 1000 hectares ou mais) ocupam 83% da área do estado. Já as 48 terras indígenas delimitadas somam juntas 2,5%, de acordo com os números da Funai (Fundação Nacional do Índio).

A Funai, aliás, com seus pés amputados por restrições orçamentárias e as cabeças cortadas diante do desembarque de militares e policiais no governo Bolsonaro, desapareceu de suas funções de mediadora de conflitos e de assistência aos indígenas.

Desamparadas, as comunidades vivem uma rotina de massacres e intimidações. E não escondem: se Bolsonaro ganhar mais quatro anos no poder, o cenário será de desespero.

Se ao longo do período de democratização houve uma tentativa incipiente de se garantir alguns dos direitos dessas comunidades, o bolsonarismo desembarcou para frear esse processo.

A expansão da fronteira agrícola e a participação de Mato Grosso do Sul como um dos polos exportadores de commodities do Brasil ao mundo também marcaram o debate sobre o povo indígena na região.

Mas se o problema é antigo, a decisão de Bolsonaro de não demarcar novas áreas, defender o agronegócio de maneira incondicional, distribuir armas e bradar falas racistas e o ódio autorizou uma ofensiva inédita na região e que se traduziu em sangue que parece tingir a terra de uma das áreas produtivas mais cobiçadas do planeta.

Não por acaso, ao longo das estradas do estado, cartazes gigantes trazem a imagem de Bolsonaro, ao lado de frases como "o agro é vida", "o Brasil alimenta o mundo", ou "Deus, pátria e família". Em 2021, o estado de Mato Grosso do Sul bateu recorde de exportações, somando quase US$ 7 bilhões (cerca de R$ 35 bilhões). Metade foi para abastecer a China.

Jamil 1 - Nas estradas de Mato Grosso do Sul, cartazes foram espalhados em apoio a Bolsonaro - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Nas estradas de Mato Grosso do Sul, cartazes foram espalhados em apoio a Bolsonaro
Imagem: Jamil Chade/UOL

Para a Defensoria Pública da União, não existem dúvidas de que houve um agravamento da situação dos indígenas nos últimos quatro anos, inclusive com uma ação deliberada de desassistência.

As condições insustentáveis e um clima de crise humanitária dentro das reservas levaram muitos a buscar alternativas. Uma delas é fazer parte das chamadas "retomadas", processos pelos quais os indígenas ocupam terras que já foram parte de seu território, mas hoje não estão demarcadas. O problema é que, uma vez nessas regiões, eles são alvos de constantes ataques por "invasão de propriedade privada".

Se não bastasse, há um sentimento na região de que o governo deu um cheque em branco para qualquer grupo que atuar para conter o avanço dos indígenas para fora de suas reservas. A impunidade é ainda completada por uma aliança tácita entre fazendeiros e o governo que se traduz até mesmo em ações de proprietários alimentando policiais em operações contra indígenas ou o uso de ônibus escolar para transportar as forças de ordem.

"O que existe é uma tentativa de extermínio", disse Daniele Osório, defensora pública federal. A realidade de extermínios e ameaças que a reportagem presenciou será exposta em um novo informe que o Conselho Indigenista Missionário apresentará nesta quarta-feira em Brasília.

Marco Antônio Delfino, procurador federal no Mato Grosso do Sul, alerta que os indígenas "vivem a situação mais difícil na história recente do Brasil". Segundo ele, as novas leis sobre armamentos facilitaram a criação de verdadeiros exércitos privados. "As pessoas se armaram", disse. Antes as armas poderiam ficar na fazenda. Mas uma alteração nas leis permite que possam andar armados durante todo o perímetro da propriedade", disse.

Outro fator que pode contribuir para o aumento da violência é que cada uma dessas pessoas pode ter um número maior de armas. "Imagine isso numa fazenda. Numa propriedade, tem praticamente um exército dentro de uma fazenda", disse o procurador, que investiga casos de ataques contra indígenas.

Covas abertas

Um dos casos que mais mexeu com a população local foi a morte de um indígena na região de Taquaperi, perto do município de Coronel Sapucaia (MS), na fronteira com o Paraguai. Ao longo de décadas, o território indígena havia sido reduzido a uma fração do que era e, diante de um contexto de falta de terras, vários integrantes na comunidade passaram a ocupar novas áreas. Os confrontos, diante da falta de garantias, explodiram.

No dia 21 de maio, o relato dos indígenas é que, ao sair em busca de madeira, o guarani-kaoiwá Alex Lopes foi morto com oito tiros na proximidade da sede de uma das fazendas da região. Seu corpo foi jogado num riacho próximo à fronteira com o Paraguai. Segundo eles, a única testemunha do caso não foi ouvida pela polícia e o corpo do rapaz jamais foi encontrado.

Como resposta ao assassinato, os indígenas decidiram invadir a sede da fazenda e ocupá-la. "Já era nossa terra tradicional. Alex foi morto como um animal", justificou um dos líderes da retomada, cobrindo o rosto e pedindo para que não fossem identificados.

Indígena na região de Taquaperi; fazenda foi ocupada após assassinato - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Indígenas na região de Taquaperi; fazenda foi ocupada após assassinato
Imagem: Jamil Chade/UOL

O local foi denominado Tekoha Jopara e, apenas um dia depois da retomada, o Departamento de Operações de Fronteira, órgão de segurança do estado, promoveu um cerco policial na esperança de desalojar os indígenas. Mas a resistência foi mais forte.

"Alex não é um caso isolado e não podemos deixar que assim seja definido", alertou uma carta publicada pela Grande Assembleia Kaiowá e Guarani da Aty Guasu. A versão da Polícia Federal é outra. Num inquérito obtido pelo UOL, ela aponta que não existem provas do envolvimento de fazendeiros no assassinato.

No dia em que a reportagem esteve no local, os indígenas contaram que continuavam sendo alvo de ameaças. Para chegar até a sede da fazenda ocupada, a reportagem teve de usar uma estrada que havia sido bloqueada pelos indígenas com troncos e árvores derrubadas. O temor era, segundo eles, justificado. Mesmo depois da retomada, a cada domingo perto das 5h, uma camionete com homens armados percorre uma parte da fazenda, fazendo ameaças aos indígenas.

Indígena na região de Taquaperi, perto da fronteira com o Paraguai, tomaram sede de fazenda depois do assassinato de Alex Lopes - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Indígenas na região de Taquaperi, perto da fronteira com o Paraguai, tomaram sede de fazenda após assassinato de Alex Lopes
Imagem: Jamil Chade/UOL

De acordo com os indígenas, já houve uma tentativa de pedir a proteção da polícia diante das ameaças. Mas relatam que as forças de ordem indicaram que não teriam como vistoriar o carro. "Nós dissemos para a polícia que, então, eles estavam defendendo os pistoleiros. Decidimos que vamos também usar nossas armas", afirmou um dos chefes do grupo.

Antes, quando a Polícia Federal esteve no local após a morte de Alex, ela também alegou que não tinha como proteger os indígenas, enquanto as autoridades locais insinuaram que a região estava em parte dominada pelo narcotráfico. "O que nos disseram é que, se nós quiséssemos mesmo ficar, deveríamos retirar do local as mulheres e as crianças", contou um dos indígenas.

No local, o clima de tensão era palpável. Todos os homens andavam fortemente armados com facões e foices, na expectativa de que um confronto pudesse ser iminente. Entre os líderes, a percepção era de que outros indígenas poderiam ser mortos. "Hoje, nós temos medo", confessou um deles. "Desde o início do governo Bolsonaro, eles [pistoleiros] não têm mais piedade de nós. Para ele, nós não existimos. Não valemos nada", lamentou um dos líderes da retomada.

Ao lado da sede da fazenda ocupada, os indígenas cavaram uma cova para Alex. Mas o corpo nunca chegou e a vala vazia se transformou numa espécie de lembrança permanente da morte que os ronda.

Jamil 5 - Cova feita para o guarani-kaoiwá Alex Lopes nunca foi usada já que o corpo não foi localizado - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Cova feita para o guarani-kaoiwá Alex Lopes nunca foi usada, já que o corpo foi enterrado em outra região
Imagem: Jamil Chade/UOL

Massacre e adolescentes baleados

A morte do indígena não foi um caso isolado. Num dos confrontos mais significativos na região em anos, um massacre foi promovido na região de Guapoy, próximo à cidade de Amambai (MS) e ao lado da reserva Aldeia Amambai.

Em maio deste ano, um grupo que vivia dentro da reserva decidiu que ocuparia uma nova terra, por causa da falta de espaço na área destinada para 9.000 pessoas.

Na versão da Polícia Federal, "os índios que teriam invadido a fazenda Borda da Mata estariam se justificando da ação com o fato ocorrido em Coronel Sapucaia, a morte de Alex, no entanto foi apurado que se tratava de uma retaliação devido a apreensão de motocicletas irregulares de índios daquela aldeia conforme apresentado acima, devido a insatisfação, em protesto, realizaram aquela ação se utilizando de justificativa inverídica para ocupar propriedade privada".

No local visitado pelo UOL, as lideranças rejeitam a interpretação feita pela PF e entidades de direitos humanos apontam que a tensão na fazenda Borda da Mata era anterior.

Na manhã do dia 24 de junho, uma operação da polícia sem determinação da Justiça foi iniciada diante de crianças, mulheres e idosos. A expectativa das autoridades era de que os indígenas recuassem, deixando a fazenda e retornando para a reserva, numa espécie de reintegração sem ordem judicial. Mas mesmo com 65 policiais, isso não ocorreu e a violência tomou conta do local.

O que entidades denunciam, porém, é uma ação desproporcional por parte das autoridades, com vários feridos e até uma morte. Natiele Rodrigues foi uma das indígenas que levou um tiro de raspão na cabeça. Seu marido, Vilque Vasque, também foi baleado na perna ao tentar resgatá-la. Ambos sobreviveram, mas hoje relataram ao UOL que ainda enfrentam as consequências da violência e temor de perder movimentos.

Durante o ataque, os indígenas telefonaram para o representante local da Funai, Newton Bueno. Segundo os kaiowá, o servidor respondeu que o grupo havia invadido uma fazenda, levantando suspeitas de que ele não os apoiaria. Quando ele chegou à região, foi mantido refém pelos indígenas, ampliando a tensão. Num depoimento, ele ainda disse que foi ameaçado de morte.

Mas a surpresa maior foi quando um helicóptero chegou para reforçar a operação das forças de ordem. J.C.C., com apenas 14 anos, foi baleado no estômago e os indígenas já o davam por morto diante de suas tripas expostas. O garoto acabou sendo levado para uma UTI, sobreviveu e, hoje, garante que vai permanecer no local para "ajudar na resistência".

Jamil 7- O jovem J.C.C., de apenas 14 anos, foi baleado no estômago em operação policial na região de Amambai (MS) - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
J.C.C., de 14 anos, foi baleado no estômago em operação policial na região de Amambai (MS)
Imagem: Jamil Chade/UOL

Os tiros atingiram outros indígenas. Nenhuma ambulância, porém, foi deslocada para o local. Levados em uma camionete para o hospital, os feridos descobririam que, depois de tratados, seriam imediatamente detidos. Alguns chegaram a ficar três dias presos e sendo questionado sobre quem seriam os líderes da retomada.

"Estamos em guerra", lamentou Iris, uma das sobreviventes. "Esses anos estão sendo muito ruins. Mas essa terra é nossa", afirmou.

Quem não sobreviveu foi Victor Fernandes, 42. Diante do local de seu sepultamento, seu filho de 23 anos, Willis Fernandes, promete lutar. "Eu não vou abandoná-lo. Vou ficar até o fim. Entrei numa guerra e farei justiça. Posso até morrer, mas daqui não saio", disse, aos prantos. "Sei que, se Bolsonaro vencer a eleição, vão acabar conosco. Mas eles não nos conhecem", completou.

Após o confronto, a primeira versão das autoridades era de que o grupo era composto por paraguaios e traficantes, algo que a Defensoria Pública do Estado e a Defensoria Pública da União negam. Ambas solicitaram acesso ao inquérito aberto pela Polícia Federal. Mas até hoje não receberam nem sequer uma resposta.

As defensorias confirmam as versões apresentadas pelos indígenas sobre os ataques. Os órgãos também destacam como, nos dias seguintes aos ataques, o monitoramento da polícia continuou.

Jamil 8 - Vítima de operação policial na região de Amambai (MS) mostra ferimento a bala - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Vítima de operação policial na região de Amambai (MS) mostra ferimento a bala
Imagem: Jamil Chade/UOL

Drones fotografaram a ação de missionários e ONGs que foram ao local levar comida aos sobreviventes. Os números das placas dos carros usados ainda foram incluídos num relatório tornado público, o que foi interpretado como uma maneira de intimidar as entidades.

As defensorias rebatem a polícia e dizem que nenhuma droga foi encontrada no local nem paraguaios. Os órgãos ainda questionam as autoridades sobre o helicóptero usado, já que seu prefixo é de uma empresa de taxi aéreo que teria, como dono, um traficante.

Defensorias informaram também que existem provas documentais que apontam que houve fraude na demarcação da reserva e que, portanto, aquela área da retomada é indígena.

Mais de um mês depois do massacre, a tensão continua e as informações são escassas. "Daqui não podemos sair. Somos marcados para morrer", contou um dos líderes do grupo, em condição de anonimato. "Vamos colocar um adesivo de Bolsonaro em nossos carros para poder circular", ironizou.

Procurada pela reportagem para comentar o caso, a PF informou que as investigações estão com a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul. O UOL entrou em contato com a polícia estadual, mas não obteve resposta.

Família indígena ameaçada por pistoleiros em área de retomada em Dourados (MS) - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Família indígena ameaçada por pistoleiros em área de retomada em Dourados (MS)
Imagem: Jamil Chade/UOL

Cabeça de líder indígena vale R$ 18 mil

Para algumas das lideranças, o medo da morte já faz parte do cotidiano de uma vida marcada pela desconfiança de todos e de tudo. Essa é a realidade, por exemplo, numa das retomadas que fica nas proximidades da cidade de Dourados (MS).

A área havia sido destinada para a construção de um shopping e estava sob o controle de um grupo imobiliário poderoso. Para aquele local foram alguns dos 20 mil indígenas que estavam na reserva, terra que experimenta um confronto constante por espaço e que abriga os grupos em apenas 3.600 hectares.

"Na reserva não tem mais espaço. Não tem como plantar. Saí por isso. Somos oito irmãos e todos casaram. E faltou terra. Não penso em mim. Mas nas crianças que estão vindo. Elas vão precisar", disse Magno Souza, um dos moradores da retomada. Ele conta que, desde que ocupou a "terra de meus avós" em 2018, passou a ser alvo de ameaças.

A tensão, porém, aumentou nos últimos anos. Menos de 200 metros de onde a reportagem se encontrava, guaritas abrigavam seguranças privados que, segundo os indígenas, os ameaçam constantemente. "Com eles não têm conversa. É bala e morte", disse Magno. No local, os indígenas contavam como, pela noite, suas barracas eram iluminadas por lanternas apontadas pelos seguranças.

O indígena Magno Souza em uma retomada de terras na região de Dourados (MS) - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
O indígena Magno Souza (à dir.) em uma retomada de terras na região de Dourados (MS)
Imagem: Jamil Chade/UOL

"Há um pistoleiro que atira, xinga e nos ameaça. Chamamos a polícia e dizem que somos nós que estamos atacando", explica.

O líder da retomada conta ainda que, em uma ocasião, enquanto os barracos estavam sendo destruídos, foi pedir ajuda para a Polícia Militar. "Mas ele apenas me disse: com vocês é só caixão que resolve".

O clima de terror tem um objetivo: impedir que as famílias que estão nas reservas optem por ocupar a terra das retomadas. Magno conta que mais de cem famílias pediram inicialmente para fazer parte da ocupação. Mas muitos foram alvo de intimidação.

"Os pistoleiros vêm em casa para dizer que vão matar e queimar tudo se eles não abandonarem a região. Chegam pela noite e dizem: eu dou a chance de vocês saírem vivos daqui. Se não sair, vamos matar", contou.

Uma das famílias deixou o local depois que seus integrantes tiveram armas apontadas para a cabeça, enquanto as mulheres eram alvo de uma tentativa de estupro coletivo. "Não tem para quem pedir ajuda. Se pedimos à polícia, eles apoiam os seguranças privados", lamentou. Segundo a liderança, muitos dos que abandonam a retomada não conseguem voltar para a reserva e acabam como mendigos nas ruas de Dourados.

Magno também é alvo de ameaças. Há três anos, os jagunços revelaram que sua cabeça estava valendo R$ 18 mil. "Nos últimos três anos, a repressão endureceu. Está piorando. Matam até cachorro. Estamos na mira das armas", lamentou Magno.

Caveirão agrícola

Também nas proximidades de Dourados, Cássio Kaiowá sabe exatamente o dia em que perdeu um olho, depois de ser alvo de pistoleiros. No 13 de outubro de 2018, enquanto a eleição ocorria no país, ele conta que a violência já ganhava novos contornos em sua região.

Ao tentar construir barracas em uma área de retomada, seu grupo se deparou com um "caveirão", um trator agrícola transformado em uma espécie de tanque. "Um homem dirigia e outros três atiravam a partir de lados diferentes do carro", contou. "Nós decidimos ficar para resistir. Mas fui baleado", disse.

Cássio, assim como outros baleados, não podia ir ao hospital. "Ali, eles prendem quem aparece", justificou. O indígena apenas foi ao posto de saúde três dias depois. E sua visão jamais foi recuperada. Um de seus vizinhos tem, até hoje, uma bala alojada em sua perna.

Ele diz temer que a crise se aprofunde nos próximos meses, diante das eleições. "Bolsonaro liberou as armas. O que nós temos visto é que os pistoleiros têm armas cada vez mais poderosas. Quando eles atacam, temos de nos deitar no chão", completou.

Jamil 4 - Cássio Kaiowá perdeu um olho ao ser baleado perto de Dourados (MS) - Jamil Chade/UOL - Jamil Chade/UOL
Cássio Kaiowá perdeu um olho ao ser baleado perto de Dourados (MS)
Imagem: Jamil Chade/UOL

Funai desaparece

Em todas as reservas indígenas ou zonas de retomadas visitas pelo UOL, a constatação era a mesma: em meio à nova fase dos conflitos por terra no Brasil, a Funai desapareceu. Segundo fontes de dentro do órgão, qualquer viagem a uma terra indígena ou deslocamento precisa ser solicitada com 15 dias de antecipação. O resultado: funcionários já não deixam seus escritórios ou, quando chegam, a crise já saiu do controle.

Na condição de anonimato, um funcionário do órgão não disfarçava a frustração em trabalhar na Funai sob Bolsonaro. "Não conseguimos sair do gabinete. Não tem verba. E ainda precisamos de justificativa", disse. Segundo ele, diversos locais de conflito até agora não receberam uma visita formal do órgão.

Nas zonas de retomadas, ao contrário do que ocorria até mesmo no governo de Michel Temer, o órgão não tem autorização para prestar ajuda aos indígenas ou entregar alimentos nas casas. Aqueles servidores que se arriscam temem que seus carros sejam fotografados por drones e seu trabalho seja denunciado em Brasília.

Os ataques também são pessoais. Fazendeiros e moradores da região assediam os funcionários em bancos e restaurantes, acusando os servidores de "advogados de vagabundo". "Tenho até vergonha de trabalhar na Funai", disse. "Antes, eu ia de casa em casa, conversar com cada família", disse.

Procurada para comentar as críticas feitas à gestão Bolsonaro, a assessoria de imprensa da Presidência repassou a consulta para a Funai. Em nota, o órgão responsável pela proteção dos povos indígenas elencou uma série de medidas que disse ter adotado durante a pandemia: "entrega de mais de 1,7 milhão de cestas básicas a famílias indígenas" e a destinação de "aproximadamente R$ 100 milhões para ações de prevenção à covid-19".

O texto diz ainda que "a Funai já investiu mais de R$ 82,5 milhões em ações de fiscalização em terras indígenas de todo o território nacional" e que "investiu aproximadamente R$ 41,3 milhões em projetos sustentáveis voltados à geração de renda".

"Sobre demarcações em áreas indígenas, a Funai esclarece que trabalha em restrita obediência à legislação vigente, com absoluto respeito aos princípios constitucionais que regem a administração pública e aos entendimentos jurídicos da AGU (Advocacia-Geral da União). O órgão tem avançado em regularizações pendentes de áreas já demarcadas. O investimento da Funai em regularização fundiária chegou a R$ 42,5 milhões entre 2019 e 2021", conclui a nota.

*Colaboração de Rafael Neves, do UOL, em São Paulo