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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Bolsonaro quer ser retratado como D. Pedro, diz historiadora Lilia Schwarcz

7.set.2021 -O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chega para a cerimônia de hasteamento da bandeira em Brasília, para o 7 de Setembro, em um Rolls Royce dirigido pelo ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet - FÁTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
7.set.2021 -O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) chega para a cerimônia de hasteamento da bandeira em Brasília, para o 7 de Setembro, em um Rolls Royce dirigido pelo ex-piloto de Fórmula 1 Nelson Piquet Imagem: FÁTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

18/08/2022 05h20

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Resumo da notícia

  • Em novo livro, historiadores apontam sequestro da Independência pelo atual presidente e construção do mito do 7 de Setembro
  • Evento em São Paulo, nesta quinta-feira, lança obra que questiona a manipulação da data

Jair Bolsonaro realiza o que poderia ser chamado do quarto sequestro do 7 de Setembro e tenta ser retratado como um príncipe, nos moldes de Dom Pedro 1º. Essas são algumas das conclusões do livro "O sequestro da independência - Uma história da construção do mito do Sete de Setembro", de Carlos Lima Junior, Lilia M. Schwarcz e Lúcia Klück Stumpf.

Na avaliação dos autores, a "emancipação política brasileira decorreu de um longo e conflituoso processo, desenvolvido em várias regiões do país e que teve diversos atores. Episódios esses escamoteados em favor de uma história oficial ainda muito europeia, pacífica, masculina e unificadora, que encontrou no Sete de Setembro seu mito fundador".

Em entrevista à coluna, Lilia Moritz Schwarcz traça paralelos entre os sequestros da data em outros momentos da história e os acontecimentos em 2022. Professora titular no departamento de antropologia da USP e Global Scholar na Universidade de Princeton, ela é autora de obras como O espetáculo das raças (1993), As barbas do imperador (1998, prêmio Jabuti de Livro do Ano), A batalha do Avaí (com Lúcia Klück Stumpf e Carlos Lima Junior, 2013) e Lima Barreto: Triste visionário (2017, prêmio Jabuti de Biografia).

O livro será lançado nesta quinta-feira, em São Paulo, no teatro Antunes Filho do Sesc, às 19h30. Durante o evento, os historiadores vão apresentar suas conclusões, numa espécie de aula pública com imagens e sobre a independência. Lilia Schwarcz promete, porém, não aplicar uma prova.

Eis os principais trechos da entrevista:

O que vocês trazem neste livro que havia sido soterrado pela história oficial de 7 de setembro?

Ele traz muitas novidades. A primeira delas é um dado que já corre na academia, mas que não chega na sociedade civil de uma maneira geral: a Independência não era celebrada no dia 7 de setembro. Em 1822, a Independência foi celebrada com a aclamação de Dom Pedro 1º, no Rio de Janeiro. Esse novo mito de 7 de setembro foi construído lentamente. A primeira pessoa que menciona a data do 7 de setembro foi Dom Pedro 1º, num documento de 1827. A versão vai ganhando força e se transformando numa versão do protagonismo do imperador.

Ou seja, no lugar de pensar a data como uma festa da nação, ela se transforma na festa do protagonismo do imperador.

Outra novidade do livro é a história interna das imagens. Uma delas é a tela do Pedro Américo. Quando ele apresentou essa tela, diante da realeza, ele também editou um livro no qual ele falava tudo. Que a tela era inspirada no artista francês, que ele teve de elevar o terreno para dar mais pompa para a situação. Ele disse que sabia que Dom Pedro não estava num cavalo, mas sim numa mula. Ele sabia que as roupas das tropas não eram aquelas. E sabia que o Ipiranga não poderia lá.

Mas ele fala duas frases maravilhosas: em nome da nacionalidade eu sacrificaria a geografia. A segunda frase: a realidade inspira, mas não escraviza.

O que podemos concluir?

A ideia, portanto, é de sequestro. De fato, na Independência, temos quatro grandes sequestros. O primeiro deles foi o protagonismo do Imperador. O segundo deles é um sequestro paulista. Em 1922, São Paulo reinaugura o Museu do Ipiranga, refaz a mística sobre a tela de Pedro Américo e passa a dizer que não foi uma coincidência que a independência ocorreu em São Paulo. Ela ocorreu, segundo eles, em São Paulo por conta da índole dos paulistas, que levam à frente a nação. Portanto, esse é mais um sequestro.

Quais os outros?

Em 1972, ocorre mais um sequestro, desta vez pela ditadura militar. Estamos no auge do momento mais duro e ela, diante dos sequestros reais de pessoas e crise, resolve festejar de forma intensa a independência. O regime faz um intenso programa, que se parece muito o de Jair Bolsonaro hoje. Patrocina o filme "Independência ou Morte" e resolve trazer os corpos de Dom Pedro 1º e Dona Maria Leopoldina, que estão no Porto. Com um detalhe: o corpo de Dom Pedro chega, mas não cabe na lápide. É a necropolítica.

Mas, além disso, o regime militar sequestra a festa. Até então, a data tinha um desfile militar. Mas era uma festa civil, com desfiles de escolas, escoteiros e até pessoas com roupas típicas. A partir daquele momento, a festa é sequestrada pelos militares e Dom Pedro vira um chefe militar que precisa dar um golpe da legalidade.

E qual o quarto golpe?

É o de Jair Bolsonaro. Ele usa a tela de Pedro Américo, usa Dom Pedro como se fosse um militar. No lugar de trazer corpos, ele vai trazer o coração de Dom Pedro, mantido por testamento na cidade do Porto.

Bolsonaro, no dia 7 de setembro de 2021, ligou uma espécie de despertador do golpe. Ele anunciou o golpe. Desde então, ele passou a estar associado ao 7 de setembro. Ele fez um plano, um projeto dessa história patriótica. Ele tenta ser retratado como um príncipe, que é obrigado e tem um fardo de ir contra o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo Tribunal Federal para restituir a soberania nacional, que está ameaçada pelo comunismo, pelas pessoas que não têm pátria ou religião.

Ele está se colocando na mesma posição de Dom Pedro. Bolsonaro não tem só sequestrado a bandeira nacional e a camisa da seleção, mas os conceitos da democracia, e invertido seu sentido. É sequestro ainda mais profundo. Na comemoração de Bolsonaro, só há um desfile militar. Não há uma festa civil. E a liberdade deve ser uma questão de todos nós.

Como a narrativa oficial soterrou os demais fatos que nos levaram à Independência?

Nossa história é muito colonial e muito masculina. Fomos construindo essa lenda sobre um país pacífico, harmonioso e que incide sobre vários mitos nacionais. E também sobre a Independência. Como é que viramos essa anomalia americana de ser uma monarquia cercada por repúblicas em todos os lados? Só conseguimos isso a partir de um golpe das elites. Elas pretendiam manter o status quo e a grande propriedade. E queriam preservar a escravidão.

Com isso, foi abafada uma série de outros protagonistas. Mulheres, negros e indígenas, além de fatos em outras regiões do Brasil. Fatos que não combinam com a lenda harmoniosa do país. O Maranhão apenas aceitou a Independência em 1825, a Bahia não comemora a data no mesmo dia. Recife não aceita o pacto do Sudeste. Essa, portanto, é uma história construída.

O 7 de Setembro, no fundo, era a única data possível. Sabemos que a história é um processo. A data do 7 de setembro não é um evento que da conta de toda a independência.