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Jamil Chade

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REPORTAGEM

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O mundo sente falta do Brasil, diz Michelle Bachelet

Colunista do UOL

27/08/2022 04h00Atualizada em 27/08/2022 16h45

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O mundo e a América Latina estão com saudades do Brasil. Um país que falava pelo mundo em desenvolvimento e defendia o interesse de todo um segmento da população mundial. Quem faz a avaliação é a alta comissária da ONU (Organização das Nações Unidas) para Direitos Humanos, a chilena Michelle Bachelet, que deixa o cargo na próxima semana depois de quatro anos denunciando as violações em várias partes do mundo, inclusive no Brasil.

O UOL foi o único meio de comunicação do país a entrevistá-la com exclusividade antes de sua despedida do cargo. Numa longa conversa, às margens do lago Leman, em Genebra, a ex-presidente do Chile ainda alertou sobre os riscos que a democracia enfrenta e, uma vez mais, condenou o comportamento do presidente Jair Bolsonaro (PL) de realizar ataques contra as urnas eletrônicas e ao Judiciário. Para ela, o Brasil é conhecido por ter eleições limpas e que tais críticas "não se justificam".

Eis os principais trechos da conversa:

Violações de direitos humanos sempre existiram no Brasil. Mas o que ocorreu nos últimos quatro anos?

Minha impressão é de que houve, provavelmente, um incremento das violações de direitos humanos, em especial em alguns setores. Ataques contra jornalistas, o aumento do racismo e também o incentivo da presença em territórios indígenas de empresas, o que leva ao aumento do garimpo ilegal. Isso tudo sem uma resposta por parte do governo. Pelo contrário, acompanhado por assassinatos de defensores de direitos humanos e de indígenas.

Em alguns casos, são políticas de estado que podem levar às violações. E, de outro lado, a ausência de respostas às situações que estão presentes. Isso tudo se traduz em violações de direitos humanos.

O que vimos ainda é o aumento da violência policial. Quando houve o assassinato de George Floyd, nos EUA, iniciamos um informe sobre o racismo e um dos casos que olhamos foi o do Brasil. Entrevistamos famílias e elas nos contaram não apenas a morte sem justificativa de jovens afrobrasileiros. Mas também a absoluta falta de respostas à família. Isso é também um padrão que vemos em outros países.

O que tem de fazer o estado é desenvolver políticas contra esse racismo sistêmico que permitam que todos tenham os mesmos direitos.

Vimos no Brasil um governo que se recusa a aceitar que houve um golpe de estado em 1964: Até que ponto, ao não querer reconhecer os crimes do passado, se gera um cenário no qual esses crimes podem ser justificados hoje?

Quando a dor gerada por ditaduras não foi acompanhada, depois, por acesso à Justiça, verdade e reparação, o que vemos é que essas dores persistem numa sociedade. E isso faz com que uma reconciliação seja muito difícil. Os responsáveis por essas dores, que eu as vivi, acreditam que o tempo pode apagá-las. Acreditam que as famílias um dia não estarão e que isso vai desaparecer. Mas não é assim. Essa dor continua na família, nos amigos e vai de geração em geração.

Essa foi a aposta no Chile, e vimos que não era assim. As feridas, quando estão sujas, não cicatrizam rapidamente. Demoram muito mais e nem sempre há uma boa cicatrização. Em alguns casos, elas voltam a se abrir. Numa sociedade, quando os problemas não são enfrentados, podem gerar desde dores ou até violência. Isso também afeta a credibilidade da democracia.

É essencial que haja um processo de verdade, justiça e reparação. Temos de aprender a lição para não repetir as coisas. Tem gente que diz: todo mundo pode cometer erros. Portanto, eles podem ser repetidos. Mas estamos falando de horrores, e não de erros.

A chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos - Jamil Chade - Jamil Chade
A chilena Michelle Bachelet, alta comissária da ONU para Direitos Humanos
Imagem: Jamil Chade

No caso do Brasil, a lei de anistia ainda tem sentido?

Não conheço detalhes do caso brasileiro. Mas tivemos um amplo debate no Chile sobre isso. Era indispensável que soubéssemos a verdade. Os processos de transição podem ser diferentes. Não existe um modelo único. O importante é que o processo permita que o país conheça a realidade. É indispensável lidar com esse passado e ver qual o melhor caminho para o Brasil.

No Brasil, estamos em plena campanha eleitoral no país. Até que ponto essa eleição é importante. Está em jogo algo maior?

O Brasil é um país muito importante no mundo. Historicamente, ele tinha desempenhado um papel importante para ser uma voz forte para apoiar a voz de todo o resto da América Latina. E essa voz fez falta. Esse guia que, no mundo, tinha sido uma postura muito importante do Brasil, tratando de incidir para que os países em desenvolvimento pudessem ter melhores oportunidades e que fossem escutados. E não vimos isso nos últimos anos.

Do ponto de vista do mundo e da região, (o desejo) é que Brasil possa ter um futuro governo - obviamente democrático - que não apenas atenda às aspirações do conjunto dos brasileiros para que tenham seus direitos incentivados e protegidos. Mas que possa jogar um papel internacional muito necessário e sentimos falta.

Sabemos que há uma polarização política durante as eleições. É natural que os partidos apresentem seus planos de governo, que possam criticar um programa diferente de governo. Mas tudo isso deve ser feito num clima de respeito, de entender que a democracia implica olhar ao outro como um adversário político. Mas não como um inimigo do país ou inimigo da pátria.

Precisa haver um debate substantivo. E não exacerbar o ódio contra os outros ou cair em estigmatização pessoais. É muito grave quando um chefe de estado, com um discurso violento, incentiva aos seus apoiadores a manifestar contra o Judiciário, contra o sistema eleitoral.

O Brasil é um país que, em geral, deu mostras que é um país que respeita, que tem eleições limpas e transparentes. Nunca foi questionado fundamentalmente por isso. Não se justifica esse tipo de crítica. Mas incentivar a marchar contra outro poder de estado? Você pode discordar de um outro poder. Mas fazer isso não faz bem à democracia. Pode aumentar a violência, como já vimos em outras partes do mundo.

Não se trata apenas de um discurso de uma pessoa. Depois há o meio social, os ataques contra indivíduos que podem ser físicos. E que gera um clima de violência que pode ser muito grave.

Para Bachelet, o Brasil é conhecido por ter eleições limpas - Sean Gallup/Getty Images - Sean Gallup/Getty Images
Para Bachelet, o Brasil é conhecido por ter eleições limpas
Imagem: Sean Gallup/Getty Images

E isso pode abrir uma caixa de Pandora para um momento pós-eleitoral?

Depende do país. Mas é por isso que é chave que os líderes que foram eleitos possam levar uma voz de calma e tranquilidade em todo o processo. Não vimos tanto isso na América Latina, mas em outras partes vimos violência sexual, assassinatos e ataques. E isso é muito grave e pode ser prevenido se os líderes políticos são capazes de manter um tom adequado e um discurso que não incita o discurso de ódio e violência. Mas um discurso que permita definir a diferença entre as pessoas e que, portanto, todos os brasileiros possam ir votar com tranquilidade e fé. Que sua opção (política) não vai colocá-lo em risco. A paixão faz parte, principalmente no Brasil. Mas disso pensar que possa se transformar em violência, é algo muito grave.

O que tampouco pode ocorrer é que um discurso de violência possa instigar a alguns atores, como a polícia, para que atuem de uma certa forma contra um candidato opositor. Isso não pode ocorrer.

A senhora faria algum apelo ao Brasil neste momento?

Eu faria um apelo para que todas as pessoas responsáveis, no governo ou não, todos os candidatos e partidos, possam realizar um processo eleitoral legítimo, de uma maneira serena. Com entusiasmo e paixão.

Mas fazendo todo o possível para evitar o discurso de ódio, evitando incitar a violência e evitando incitação aos outros problemas, como racismo e discriminação contra os mais pobres. Tratar de ser campanha democrática. E democrática quer dizer tudo isso junto.

Nos últimos anos, vemos líderes com perfil autoritário usando os instrumentos de democracias para chegar ao poder. Hoje, a democracia está ameaçada por esse fenômeno?

A democracia hoje não apenas está desafiada por pessoas que foram eleitas por uma via democrática, mas que usam, uma vez no poder, uma forma de relação com a sociedade autoritária. Sem abertura ao diálogo e sem consultas para entender as demandas das pessoas. Muitas vezes, com respostas que utilizam a força diante de protestos pacíficos. Ou tentar passar leis que restringem os espaços democráticos, a liberdade de imprensa, usando desculpas como a pandemia e o terrorismo.

Esse é o único elemento de crise da democracia?

Há outro aspecto. Antes da pandemia, vimos mais de 80 países com manifestações. As pessoas estavam nas ruas, por diferentes temas, pelo déficit de direitos sociais e econômicos, as condições de vida, altos preços de alimentos. Isso, inclusive, estamos voltando a ver agora com a guerra na Ucrânia e que vai levar a muitos protestos sociais. A inflação vai colocar as pessoas em dificuldades.

Vimos a falta de credibilidade das instituições. Não apenas dos líderes eleitos. Mas também o questionamento sobre o Poder Judiciário, sobre a polícia, a toda a estrutura da sociedade. Para essas pessoas, a avaliação era de que a democracia não estava entregando os resultados que se esperavam, em termos de melhoria de vida.

A democracia não é apenas eleger pessoas. Mas como as pessoas eleitas garantam uma melhoria de vida. O que ocorreu é que, para muita gente, perdeu-se a credibilidade na política e nas instituições. Não há resposta à impunidade, as pessoas nem sempre tem acesso à justiça. Portanto, há um questionamento global sobre a democracia. Não apenas pelo uso autoritário de alguns líderes, mas pela falta de resultados.

De que forma?

As pessoas se perguntam: faz diferença mesmo votar? Não vai melhorar minha vida? Ou dizem que um político, uma vez superada a eleição, se esquece das pessoas. A realidade é que as pessoas hoje esperam mais da democracia. Não basta apenas votar. Mas fazer parte da tomada de decisão, de ser informado. Isso pode ser no âmbito local ou nacional. Há uma crise da democracia. Há ainda uma falta de confiança no sistema econômico, já que, da forma que está, não vai gerar melhorias à vida das pessoas.

Antes mesmo da pandemia, a diferença entre pobres e ricos aumentou. Agora, tivemos uma pandemia e uma guerra que atingiu ao mundo todo com a inflação. Muitos países achavam que, com a pandemia sob controle, poderiam recuperar suas economias. Mas estão sendo fortemente afetados.

Portanto, os líderes precisam levar em consideração tudo isso. Mas, para isso, esses mesmos líderes não podem colocar em questão as instituições, não as destruam. Mas que as fortaleçam.

Ainda não vimos todas as consequências da guerra e teremos de pensar em como dar uma resposta a isso, da mesma forma que houve uma resposta à pandemia, ajudando as pessoas e principalmente os mais vulneráveis.