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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Na ONU, governos pedem garantias a aborto legal no Brasil

 Conselho de Direitos Humanos da ONU - Xinhua/Xu Jinquan
Conselho de Direitos Humanos da ONU Imagem: Xinhua/Xu Jinquan

Colunista do UOL

14/11/2022 13h10Atualizada em 16/11/2022 18h34

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Governos estrangeiros usaram a sabatina do Brasil na ONU, nesta segunda-feira, para pressionar Brasília a garantir acesso ao aborto legal, e até mesmo a adotar uma postura de descriminalização do ato.

Pelo sistema da sabatina da ONU - oficialmente chamada de Revisão Periódica Universal - governos de todo o mundo são convidados a fazer perguntas e apresentar recomendações ao país examinado. No caso brasileiro, a reunião que contou que mais de duas dezenas de representantes de Brasília demonstrou a insatisfação entre os vários governos estrangeiros e a administração de Bolsonaro.

Um dos principais destaques acabou sendo o tema do atendimento a mulheres e meninas. Os governos de Austrália, França e Nova Zelândia pediram a garantia de acesso à saúde sexual e reprodutiva sem barreiras judiciais, além de acesso ao aborto legal.

O mesmo tema foi citado pelos governos do México e da Argentina, enquanto a Noruega pediu a descriminalização do aborto e o acesso ao aborto seguro. A Islândia pediu a legalização do aborto, enquanto o tema também foi citado pela Suíça. Índia e Panamá também citaram o acesso à saúde sexual e reprodutiva.

Mas, numa intervenção durante o encontro, o Ministério da Saúde reconfirmou que o governo é "contra o aborto" e garantiu que o protocolo usado para ter acesso a tais serviços é adequado.

A versão é contestada por movimentos da sociedade civil, que apontam que o novo modelo dificulta o acesso de mulheres ao aborto legalmente previsto pela Constituição.

O tema também pautou o discurso de Cristiane Britto, ministra de Família, Mulher e Direitos Humanos. Ela garantiu que existe no governo um "compromisso inabalável com os direitos humanos". Mas destacou que sua posição contra o aborto é "inegociável".

Numa conclusão da presença de quatro anos do bolsonarismo na ONU, a ministra brasileira encerrou sua fala insistindo sobre a pauta de valores e indicando que seu governo manteve um posicionamento da defesa da "pátria, família e liberdade".

O Brasil terá até fevereiro de 2023 para dar uma resposta às sugestões e críticas. Mas a equipe de transição do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva já conversa com Brasília para impedir que a atual administração bolsonarista assuma qualquer compromisso, já que um novo governo assumirá o país em menos de 50 dias.

Um temor é de que o atual governo sinalize uma resposta para esses países que tocaram no tema do aborto, comprometendo a próxima administração na gestão Lula.

Ao longo dos últimos quatro anos, o governo Bolsonaro aderiu a uma aliança internacional contra o aborto, ao lado de Donald Trump e algumas das autoridades mais conservadoras do mundo, entre elas Arábia Saudita e Bahrein. Também fazem parte do pacto populistas como Hungria e Polônia.

O UOL apurou que, assim como ocorreu com a chegada de Joe Biden no governo americano ou de Gustavo Petro na Colômbia, o Brasil deve deixar a aliança na gestão Lula.

Para Sonia Corrêa, coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, o governo usou a revisão para vender sua imagem. Parte disso, segundo ela, foi feito com a composição de uma delegação com predominância de mulheres, no esforço de mostrar que o bolsonarismo não é contra a mulher.

Ela ainda destaca como o governo Bolsonaro "usou o palco da ONU para projetar uma agenda ideológica".

Segundo a especialista, apesar de o Brasil fazer uma defesa enfática de sua posição contra o aborto, não houve nenhum pais que apoiou de forma contundente essa visão do Brasil. Ela ainda lembra que apenas dois países mencionaram a defesa da família: Rússia e Egito.

Mais de 300 recomendações

A reunião da ONU nesta segunda-feira se transformou num raio-x das políticas públicas do governo de Jair Bolsonaro, enquanto dezenas de governos cobraram sua gestão por conta da deterioração da situação de direitos humanos no Brasil, o encolhimento do espaço para a sociedade civil, além de violência contra minorias, mulheres, indígenas e jornalistas. Mais de 300 recomendações foram feitas ao Brasil.

Além das cobranças de governos, ativistas e especialistas alertaram que o governo usou o palco da ONU para desinformar sobre a situação do país e as ações do governo, além de omitir dados sobre a destruição do meio ambiente, mortes por covid, assassinatos pela polícia e desmonte de instituições. A indignação foi de tal dimensão que, da ala onde estavam as ongs dentro da sala das Nações Unidas, ativistas não se continham. "Mentira", alertava uma voz do grupo de ativistas.

Num outro trecho da participação do Brasil, uma representante da Funai ainda afirmou que o órgão tem feito investimentos e apoiado indígenas, inclusive no combate contra a covid-19 e na redução de desmatamento de 26% dentro de terras indígenas. Eloy Terena, advogado da Apib, insistiu que os números são falsos. Segundo os dados da WWF, houve um aumento de 138% do desmatamento entre 2019 e 2021 nesses territórios, em comparação aos três anos precedentes. So em 2021, foram 18 milhões de árvores cortadas nesses territórios, em 155 terras indígenas.

Outra declaração que causou estranheza foi feita pelo Ministério da Saúde, que indicou que a estratégia de Bolsonaro permitiu "controlar a pandemia" da covid-19. Segundo o governo, foi realizada a "maior campanha de vacinação de nossa história". Mas em nenhum momento as autoridades citaram o atraso na compra das vacinas, os 700 mil mortos e um colapso do sistema de saúde em várias partes do país.

No setor da Educação, Daniel Cara, da Faculdade de Educação da USP e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, destacou que várias das leis citadas pelo governo na ONU foram criadas nas gestões do PT, enquanto alguns dos projetos mencionados nem sequer tiveram verbas suficientes.

Amigos e provocações

Entre os elogios que o governo Bolsonaro recebeu, dois chamaram a atenção. Um deles veio do regime comunista da China, que disse que o mundo deveria "reconhecer" os avanços em temas de diretos humanos. O governo de Vladimir Putin, isolado pelas potências ocidentais, ainda afirmou que a situação de direitos humanos no Brasil é "estável" e destacou como ambos os países defendem a família, em sua definição tradicional.

O encontro ainda foi marcado foi mensagens e provocações, sempre em tom diplomático. O governo da França, que nunca escondeu suas críticas contra Bolsonaro, citou as "maravilhosas eleições" que ocorreram no país. O Reino Unido também aplaudiu as eleições "pacíficas", enquanto a Venezuela foi além e parabenizou Luiz Inácio Lula da Silva.

Eis as principais cobranças em relação ao governo Bolsonaro:

Indígenas e meio ambiente

Um dos temas mais citados foi a situação dos indígenas brasileiros. Bolsonaro havia alertado que não iria realizar qualquer nova demarcação durante sua gestão. Mas governos estrangeiros deixam claro que a situação é crítica e que preocupa a comunidade internacional.

As autoridades de Luxemburgo, por exemplo, pediram medidas contra invasões de terras indígenas, enquanto a Malásia apontou para a situação dos indígenas afetados por covid-19.

Moçambique ainda pediu o reforço de medidas para garantir os direitos de indígenas, enquanto Irlanda ou Malta propuseram fortalecer agências como Funai e entidades ligadas ao meio ambiente.

O governo da Noruega pediu a volta da demarcação e garantir proteção de indígenas, um ponto ainda levantado por governos como o dos Estados Unidos, Dinamarca, França, Reino Unido, Canadá, Holanda, Ucrânia, Romênia, Coreia do Sul, Peru e Nova Zelândia. Até a Polônia, um aliado do bolsonarismo, pediu fortalecimento de proteção aos indígenas.

O governo mexicano ainda cobrou um compromisso com a demarcação de terras, enquanto a Eslovênia pediu que povos tradicionais sejam consultados em projetos que possam afetar seus direitos. O governo da Alemanha ainda "lamentou" que a demarcação tenha sido freada e pediu investimentos na Funai.

O governo da África do Sul pediu uma maior ação contra o desmatamento e proteção aos grupos indígenas. Já a Austrália e a Suíça querem o fortalecimento da Funai e a volta da demarcação de terras.

O governo da Venezuela foi outro que apontou que está "preocupado com a situação deteriorada que o governo anterior (Bolsonaro) deixou no que se refere aos povos indígenas".

Em nenhum momento em mais de três horas de reunião, o governo brasileiro citou os números totais de desmatamento, nem de mortes de indígenas ou invasão de terras.

Espaço para a sociedade civil

A violência contra a sociedade civil e jornalistas também foi destacada pelas autoridades estrangeiras. O governo da Holanda pediu a reconstrução do espaço cívico, enquanto Malta apontou para a necessidade de dar recursos para garantir a proteção de defensores de direitos humanos.

Austrália, Montenegro, Letônia e Lituânia também pediram maior espaço para a sociedade civil e o combate à perseguição contra jornalistas e ativistas, assim como a garantia de investigações de eventuais crimes.

A Noruega ainda pediu medidas para a proteção a defensores de direitos humanos, ambientalistas e jornalistas, enquanto a Espanha insistiu sobre a necessidade de uma maior ação pela proteção de ambientalistas.

Ao tomar a palavra, o governo da Suécia afirmou que está "preocupada" com a situação de defensores de direitos humanos. Segundo os escandinavos, o país precisar "garantir que ameaças e ataques sejam investigados e que os responsáveis sejam responsabilizados".

O governo de Joe Biden também insistiu sobre a necessidade de que ambientalistas, sindicalistas e outros atores da sociedade civil sejam protegidos contra a violência.

Homofobia

Os ataques contra o movimento LGBTQIA+ também foram citados. Governos como os do México, Reino Unido, e Malta pediram que medidas concretas sejam adotadas para lutar contra a homofobia. A Noruega, por exemplo, ainda pediu que protocolos sejam estabelecidos para a ação da polícia, no que se refere ao tema.

O governo da Suécia também afirmou estar "preocupada" com a situação de minorias, como dos movimentos LGBTQIA+. Já as autoridades da Venezuela se disseram "preocupadas" com o discurso de ódio contra essa população.

Afrobrasileiros e violência policial

O governo Bolsonaro ainda foi cobrado por conta da violência policial e racismo. O assunto foi tocado pelas autoridades da Nova Zelândia e Coreia do Sul, enquanto a Namíbia pediu compromisso com a luta contra o racismo estrutural e violência contra afrobrasileiros. Já o governo do Panamá recomendou um maior controle de armas, inclusive em operações policiais.

Uganda sugeriu a adoção de medidas para colocar fim ao racismo, enquanto o governo dos EUA quer investigações sobre todas as ações policiais, em especial contra afrobrasileiros.

O governo da Alemanha foi outro que citou as execuções cometidas pela polícia e pediu medidas para acabar com a impunidade.

"A comunidade internacional está atenta e informada sobre as principais violações sofridas pela população brasileira nos últimos quatro anos", disse Camila Asano, diretora de programas da Conectas Direitos Humanos.

"As mortes de ativistas e tentativas de criminalização da sociedade civil, a perseguição a jornalistas e o racismo institucional foram motivo de preocupação de diversos países-membros, que apontaram recomendações para que o país garanta a segurança e o direito dessas populações", destacou. "Os ataques constantes a direitos dos povos indígenas também estão no radar dos países, que cobraram do Brasil a demarcação de terras e a rejeição ao marco temporal. Países como Peru, Moçambique, Reino Unido e Angola ainda congratularam a condução de eleições democráticas no Brasil", afirmou.

Ela ainda destaca as omissões no discurso do Brasil. "Ao contrário do que aponta o governo Bolsonaro na ONU, o Brasil é o país que mais mata defensores de direitos humanos e ativistas pela terra", disse.

"Em 10 anos, foram registradas 342 mortes de ativistas e defensores do meio ambiente no país, segundo dados da Global Witness. Para além do número recorde de mortes registradas, o governo federal trabalhou ativamente nos últimos quatro anos para criminalizar o trabalho da sociedade civil e perseguir opositores, bem como para combater a demarcação de terras indígenas, aumentar o armamento da população e incitar ataques a imprensa", completou.