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Jamil Chade

REPORTAGEM

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100 entidades pedem que novo governo rompa com aliança ultraconservadora

28.jun.2019 - Jair Bolsonaro e o presidente dos EUA, Donald Trump, posam para foto durante o Encontro do G20 - Reprodução/Twitter/@jairbolsonaro
28.jun.2019 - Jair Bolsonaro e o presidente dos EUA, Donald Trump, posam para foto durante o Encontro do G20 Imagem: Reprodução/Twitter/@jairbolsonaro

Colunista do UOL

25/11/2022 06h08Atualizada em 25/11/2022 13h40

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Mais de cem entidades brasileiras pedem que o governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva rompa com a aliança ultraconservadora na qual o presidente Jair Bolsonaro colocou o Brasil. O grupo, junto com governos como o da Arábia Saudita e populistas de extrema direita como a Hungria, defende uma atitude antiaborto.

Chamada de Consenso de Genebra, a aliança foi costurada entre Donald Trump e Jair Bolsonaro, na esperança de frear qualquer avanço do debate sobre o aborto em entidades como a OMS ou a ONU. Quando assumiu a presidente dos EUA, Joe Biden ordenou a retirada de seu governo do bloco no primeiro dia de governo. Na Colômbia, Gustavo Petro fez a mesma coisa.

No Brasil, ainda que nomes como o de Celso Amorim defendam a saída do país da aliança, o UOL apurou que existe uma pressão por parte de evangélicos para que Lula não siga os mesmos passos de Biden.

Mas, numa carta enviada à equipe de transição e ao vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, as mais de cem entidades brasileiras insistem que essa ruptura precisa ocorrer.

"As organizações que assinam o presente documento vêm, respeitosamente, solicitar ao governo eleito que retire a adesão do Brasil da "Declaração de Consenso de Genebra'", para retomar os compromissos internacionais do Estado brasileiro com a igualdade de gênero e os direitos sexuais e reprodutivos", defendem.

Para eles, a aliança internacional "defende um conceito restritivo de família, restringe os direitos reprodutivos, sendo contrária ao direito ao aborto, inclusive nos casos legais".

"É composta somente por 36 países, dentre eles Estados ultraconservadores reconhecidos por violarem os direitos das mulheres e da população LGBTI", destacam.

"Embora não tenha a força de tratados internacionais, a Declaração mancha a trajetória da política externa brasileira em matéria de direitos humanos. Com base nela, o governo Bolsonaro legitimou uma postura voltada a restringir menções a direitos sexuais e reprodutivos em documentos discutidos em fóruns multilaterais, marcando o desalinhamento do Brasil com compromissos históricos assumidos pelo Estado brasileiro de proteção e promoção desses direitos", apontam os grupos.

Fazem parte do pedido a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos, Associação Juízes para a Democracia, Associação Nacional de História, ARTIGO 19, Casa Sueli Carneiro, Católicas pelo Direito de Decidir, Central Única dos Trabalhadores - CUT, Coalizão Negra por Direitos, Conectas Direitos Humanos, Instituto Marielle Franco, Observatório de Sexualidade e Política (SPW), Rede Médica pelo Direito de Decidir, Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), dezenas de centros universitários e grupos de profissionais de diferentes áreas.

"O anúncio da saída do país dessa aliança ultraconservadora significaria a recuperação da posição de respeito do Brasil no cenário internacional. Abandonar o Consenso indicaria a retomada da condução da nossa política externa com base em princípios e normas internacionais", defendem.

"Para a comunidade mundial, a permanência brasileira pode sinalizar negativamente a quebra de compromissos assumidos desde os anos 1990", disseram os grupos.

"Portanto, a saída do Brasil dessa articulação com governos ultraconservadores é uma medida urgente no sentido de conter os efeitos negativos dos ataques da extrema direita global às políticas de igualdade de gênero e vai fortalecer o compromisso internacional do país com os direitos das meninas, mulheres e da população LGBTI, pavimentando a retomada da histórica liderança brasileira na promoção de agendas multilaterais de direitos humanos", concluíram.
No texto, os grupos destacam como a aliança na qual o Brasil faz parte teve uma influência em suas políticas no exterior e no país.

Em 2019, o Brasil se absteve na votação de trechos de uma resolução debatida no Conselho Econômico e Social da ONU que visava garantir saúde sexual e reprodutiva a pessoas afetadas por crises humanitárias. Já em 2020, o governo brasileiro novamente se absteve em votação de normativa sobre discriminação de gênero no Conselho de Direitos Humanos da ONU, exigindo a retirada de informações do texto, mais especificamente no trecho sobre acesso a métodos contraceptivos.

"Essa postura lamentável se repetiu em 2021, quando o governo se recusou a participar de uma Declaração elaborada no âmbito do Conselho no Dia Internacional da Mulher, que apelava aos Estados para incluírem serviços de saúde sexual e reprodutiva nos planos de enfrentamento à pandemia; e em 2022, quando novamente o governo tentou vetar outra resolução do Conselho com disposições no mesmo sentido", destacam.

Como última cartada, atropelando o processo de transição política, durante a Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU realizada na semana passada, o governo rejeitou 10 recomendações feitas por outros países em matéria de direitos sexuais, reprodutivos e gênero.

Segundo as entidades, internamente, a política externa brasileira também surtiu "efeitos deletérios, com destaque para os ataques ao direito de interrupção da gravidez nas situações previstas em Lei".

"Em 2020, em um episódio deplorável, houve denúncias de que a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos à época, Damares Alves, teria atuado para impedir o aborto legal de uma menina de 11 anos, estuprada por seu próprio tio. Devido ao vazamento de dados da menina, inclusive sobre a sua localização, ela e sua família foram hostilizadas e ameaçadas, estando hoje sob tutela do programa de proteção à testemunha", disseram.

Em seguida, o Ministério da Saúde editou uma portaria que determinava a obrigação de que médicos e profissionais da saúde notificassem à polícia quando da procura do serviço de aborto legal, mudando o foco da proteção e assistência para a criminalização e repressão. Além disso, a portaria previa que médicos informassem à pessoa interessada sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia.

Pressionado pela discussão da ADPF 737 pelo Supremo Tribunal Federal, que contesta tais medidas, o Ministério da Saúde publicou uma nova portaria, ainda em vigência, modificando alguns pontos, mas mantendo dispositivos ilegais que constrangem vítimas de violência sexual.

"A postura internacional do Brasil nos últimos quatro anos, cuja posição se consolidou em ativa participação no Consenso de Genebra, vai na contramão da história diplomática do país na defesa da igualdade de gênero e dos direitos sexuais e reprodutivos", defendem.

"A saída do Brasil do Consenso de Genebra representa também o compromisso do país em romper com a reprodução de violências raciais, pois registra-se, nos últimos 4 anos, inúmeras violações de direitos da população negra e indígena, inclusive no tocante ao direito à saúde reprodutiva e sexual", insistem.