Festivais reivindicam papel da literatura diante da encruzilhada global

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Num momento de transformações globais, escritoras, poetas e artistas vão se reunir em três festivais no interior de Minas Gerais em 2025 para debater a encruzilhada que o mundo atravessa. Seu instrumento: a literatura.
Em Paracatu, Araxá e Itabira, o produtor cultural Afonso Borges e os curadores Jeferson Tenório, Bianca Santana e Sergio Abranches querem transformar o ciclo de encontros entre autores e o público numa oportunidade para traçar os contornos de um caminho sustentável, ético e humano diante do desmonte de pilares da civilização.
Enquanto a velha ordem mundial é desfeita diante de nossos olhos e a incerteza impera, o palco não é estranho aos desafios. Foi pelos vales mineiros que a história do país teve sua encruzilhada em diversos momentos. Agora, eles servirão como locais para que algumas das maiores referências nacionais e internacionais da literatura possam abrir uma discussão sobre a reconstrução do futuro.
Se os eventos ao longo dos anos foram tradicionalmente marcados pela procura da diversidade como arma para retratar a complexidade da sociedade, a meta agora escolher caminhos.
"A humanidade está na encruzilhada, com os demônios apontando caminhos errados", diz Borges. "A encruzilhada nos coloca o caminho da ética como única opção", defende.
Desumanização e Valter Hugo Mãe
O primeiro dos festivais conceituais será Fliparacatu, entre os dias 27 e 31 de agosto. Com o tema "Encruzilhada, Literatura e a Desumanização, o evento irá homenagear o português Valter Hugo Mãe.
"A modernidade, assim como período colonial, acelerou o processo de desumanização de nossos tempos. Como resultado, tivemos, além da violência estrutural, uma tragédia epistemológica, oriunda de uma sociedade mediada pelo capitalismo e por medidas neoliberais", constata o escritor Jeferson Tenório.
"Desse modo, a reversão da desumanização passa, por exemplo, por uma recusa da substituição de linhagens e ancestralidade pela possibilidade de acúmulo e utilidade do indivíduo. Isto é, falar desumanização significa reconhecer que a subjetividade e os matizes dos efeitos da colonização estão presentes em nossas vidas", afirmou.
"A voltar às origens, não significa, apenas uma celebração do passado, mas suspeitar da episteme tradicional do ocidente. Significa, pois, desnaturalizar a construção do conhecimento no que diz respeito às teorias que tentam explicar os processos de violência e exploração provocadas pelo colonialismo", disse.
"A literatura, nesse sentido, se torna a possibilidade poderosa de ligação entre formas de pensar e modos de viver. A literatura pressupõe a alteridade. Une vivências e oferece possibilidades de experiências. A troca de sensibilidades é o lugar da literatura", diz.
Para Tenório, Valter Hugo Mãe propõem esta troca, esta possibilidade de aprendizagem estética. "Em seu livro: "A desumanização" , o luto e a perda, pela ótica de uma criança, nos proporcionam outros aspectos da condição humana, nos levando às encruzilhadas subjetivas com múltiplos caminhos e possibilidades, onde a recuperação de uma humanidade perdida passa, sobretudo, por um olhar poético sobre vida", diz.
Memória e Scholastique Mukasonga
A segunda etapa do ciclo ocorrerá entre os dias 1 e 5 de outubro, na Fliaraxá. Com o tema "Encruzilhada, literatura e dever de memória", o festival irá homenagear a escritora ruandesa Scholastique Mukasonga, que tem se dedicado a recuperar o genocídio em seu país e transformar a memória em um escudo contra futuros crimes.
"A elaboração do passado nos permite responder às necessidades do presente. Pela literatura, nos conectamos ao outro e experimentamos mais possibilidades de interpretar experiências individuais e coletivas", afirmou Bianca Santana.
"Quem testemunha o horror e sobrevive a ele, nos ensinou Primo Levy, tem o dever de memória", diz. "Elaborar o trauma ao narrar. Lembrar e contar para que não se repita. Scholastique Mukasonga é exemplo de responsabilidade ética radical na literatura", destacou a escritora.
"Sobreviveu a um genocídio e, com palavras, teceu uma mortalha para cobrir o corpo de sua mãe, construiu um túmulo para sepultar seu pai, tem emocionado leitoras e leitores no mundo todo", diz.
"Na encruzilhada em que estamos, o dever de memória - das ditaduras, das guerras, dos genocídios, da escravização - se faz necessário para que o absurdo não se repita. Pela literatura, podemos imaginar os fundamentos de um futuro de paz e liberdade para todas as pessoas", defendeu.
Momento de escolha
O ciclo se encerra na Flitabira, entre os dias 29 de outubro a 2 de novembro. O evento será marcado pela entrega do prêmio Juca Pato, das mãos de Conceição Evaristo e Miriam Leitão, as vencedoras dos últimos dois anos.
Neste caso, a literatura e encruzilhada têm um encontro marcado com Carlos Drummond de Andrade e seu poema "Máquina do Mundo".
"Era o começo da década de 1950, quando Drummond publicou "Claro Enigma", o volume que nos trouxe "A Máquina do Mundo", conta Abranches. "Um tempo de muitas transformações no Brasil e no mundo, desenvolvimento, reconstrução do após-guerra, mundo bipolar. Ela se abriu para o poeta naquele momento em que havia muita perplexidade, insegurança "e a esperança mais mínima", diz.
O curador destaca que hoje vivemos novos tempos de mudanças muito radicais, digitalização, avanço da tecnologia sobre as atividades humanas, algoritmos selecionando o que devemos ver nas plataformas de troca de informações, avanços autoritários, perplexidade, insegurança e, novamente, a esperança mais mínima.
"Uma encruzilhada, com alguma luz, com caminhos a escolher onde "a treva mais estrita" ainda pousa", diz.
"É como se Drummond dialogasse conosco para a escolha do tema deste 5º Flitabira", avalia Abranches. "A literatura é nosso centro, nossa periferia, nosso norte, nosso sul, nossa encruzilhada. É o espaço da liberdade que nos permite escrever como quisermos e o que quisermos. Drummond fazia isto", constata.
Para ele, a literatura precisa ser ambiciosa e buscar essa "total explicação da vida" de que o poeta nos fala nesse poema. "É o que a cada um busca fazer em suas circunstâncias singulares", diz.
"A máquina do mundo está se abrindo para nós e a literatura está ajudando a nos mostrar a encruzilhada que ela representa. A encruzilhada é o ponto da escolha, nela ainda há luz e "a mínima esperança" e temos que escolher um novo caminho, quando todos eles ainda estão ainda sob ""a treva mais estrita"", destaca.
Abranches aponta que o poeta nos alerta que seria em vão repetirmos o passado, "os mesmos sem roteiro tristes périplos". "A máquina do mundo nos convida a inovar, buscar novas respostas e, até novas perguntas", diz.
"A máquina do mundo, que "se entreabriu (?) majestosa e circunspecta é uma metáfora para a imagem que muitas culturas fazem da encruzilhada, um ponto de renovação, em que se abrem vários caminhos", afirma o curador.
"É um momento de escolha", completa Abranches.
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