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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Ditadura agiu secretamente em caso internacional de yanomamis, diz pesquisa

Documentos coletados pelos acadêmicos revelam que a questão chegou até o presidente João Figueiredo - Mundo Educação
Documentos coletados pelos acadêmicos revelam que a questão chegou até o presidente João Figueiredo Imagem: Mundo Educação

Colunista do UOL

13/03/2023 04h00

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O governo militar no Brasil (1964-1985) agiu de forma secreta nos bastidores para impedir que o país fosse condenado em instâncias internacionais por violações contra o povo yanomami. Essas são as conclusões de uma pesquisa inédita realizada a partir de documentos da diplomacia brasileira, a partir de meados dos anos 70.

O trabalho foi conduzido por Bruno Bernardi, da Universidade federal da Grande Dourados (MS), e João Roriz, da Universidade Federal de Goiás. Para eles, a pesquisa mostra como a ditadura militar mobilizava o Itamaraty para abafar e tentar arquivar denúncias internacionais, "o que se repetiu no governo Bolsonaro, sempre disposto a negar e desacreditar acusações de violações contra os povos indígenas".

O caso examinado se refere às denúncias contra o Brasil apresentadas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Entidades estrangeiras iniciaram uma petição contra o governo brasileiro ainda em 1980, com a liderança da Associação Antropológica de Washington, do Centro de Recursos Antropológicos de Boston, da Survival International e da Indian Law Resource Center (ILRC) de Washington.

Embora não figurasse formalmente entre os peticionários, a Comissão pela Criação do Parque Yanomami também teve um papel importante. A denúncia se apresentava em nome de mais de 10 mil indígenas Yanomami que, segundo as estimativas, viviam no Amazonas e Roraima.

Naquele momento, a acusação era de "enorme invasão de terras, desintegração social, disseminação de doenças, mortes e destruição", sem que "a Funai tomasse providências para prevenir a destruição das comunidades Yanomami".

O texto ainda citava a incapacidade do governo de demarcar a Terra Yanomami, ignorando doze propostas feitas entre 1968 e 1979 por antropólogos e missionários pró-indígenas. Por fim, os denunciantes solicitavam uma investigação in loco e uma resolução urgindo a criação do parque Yanomami.

O caso desembarcou no organismo internacional num momento em que o Estado oficializava uma política de assimilação e integração forçada dos povos indígenas, com um saldo de milhares de mortes.

"Projetos desenvolvimentistas de infraestrutura e megaobras, combinados com pressões de missões religiosas e frentes de expansão agropecuária e mineradora, negavam aos povos indígenas suas terras e a possibilidade de manutenção das suas cosmovisões e modos próprios de vida", aponta o estudo. "Como consequência, tais povos foram expostos à violência armada, epidemias, contaminação ambiental, expropriação de recursos naturais, processos de deslocamento forçado e inúmeros outros fatores de desintegração e extermínio étnico-cultural", indica.

A denúncia ainda apontava um questionamento ao sistema jurídico brasileiro e mostrava como o regime de tutela da ditadura sobre os indígenas cerceava seus direitos e promovia uma política oficial de integração e assimilação forçadas.

De acordo com a pesquisa, as entidades "apontaram ainda a ineficácia do trabalho de fiscalização da FUNAI: prazos para as demarcações eram descumpridos e limites de terras indígenas alterados para beneficiar interesses privados".

"No caso dos Yanomami, a construção da BR-210 (Perimetral Norte) e as pressões econômicas em favor da mineração levavam doenças, vícios, desequilíbrio ecológico e exploração de mão de obra, e a FUNAI não conseguia proteger os territórios de invasões de posseiros, fazendeiros e garimpeiros", destacam.

Ditadura agiu secretamente em caso de yanomamis - Arquivo Nacional - Arquivo Nacional
Imagem: Arquivo Nacional

Militares se mobilizam

O que a pesquisa revelou, porém, foi uma operação do Itamaraty e de diferentes órgãos do Estado para minar o processo.

Os documentos coletados pelos acadêmicos revelam que a questão chegou até o presidente João Figueiredo e que "despertou grande preocupação do governo brasileiro". "Nos seis anos de trâmite, a troca de informações entre peticionários, CIDH e Brasil, assim como entre Ministério das Relações Exteriores e outros órgãos governamentais, foi intensa, com idas e vindas processuais e muita movimentação diplomática", revelou.

Os documentos revelam três caminhos adotados pelos militares brasileiros para barrar ou, pelo menos, adiar o máximo possível qualquer tipo de conclusão por parte da Comissão. Eles são:

  • Os contatos sigilosos constantes com a secretaria da Comissão Interamericana, que vazava informações e ajudava o governo a se defender.
  • O uso de comissários brasileiros no organismo internacional e que serviam como uma espécie de informantes sobre casos que estivessem tramitando contra o regime militar. A meta era a de tentar arquivar o caso contra o Brasil.
  • Um esforço deliberado de esconder a realidade da situação dos indígenas.

"Porém, a despeito dessa intricada atuação, em razão do peso da campanha transnacional em favor dos Yanomami e da presença de comissários mais progressistas, o Brasil não logrou, como na década de 1970, influência para arquivar e vetar o andamento do caso", constata a pesquisa.

Informações privilegiadas, e Brasil barra nomeação

Um dos caminhos adotados pelo regime foi contar com o chileno Edmundo Vargas Carreño, secretário-executivo da Comissão.

Segundo os documentos colhidos pelos pesquisadores, um encontro reservado e informal em dezembro de 1980, Carreño, alertou o representante brasileiro sobre a denúncia. Na conversa, Vargas Carreño antecipou o teor da peça ao diplomata brasileiro, que transcreveu trechos no telegrama enviado a Brasília. Só um mês depois é que o governo seria oficialmente notificado do caso.

Outra atuação do Brasil foi ainda para vetar a escolha da relatoria do caso, que ficaria para o americano Tom Farer. Isso por conta de suas "notórias posições progressistas. "Depois de, em março de 1981, Farer publicar um artigo intitulado Reagan's Latin America no New York Review of Books, a ditadura teve um pretexto para denunciá-lo como parcial", disseram os pesquisadores.

"O texto criticava a política econômica e social do Brasil - e a ditadura entendeu que ele antecipava sua posição no caso Yanomami. Em razão da repercussão negativa do artigo, o comissário estadunidense acabou desistindo da relatoria", destacaram os acadêmicos.

No começo de 1982, Vargas Carreño antecipou ao representante brasileiro que o mexicano César Sepúlveda assumiria a relatoria no lugar de Farer. Num dos telegramas, o comissário brasileiro Carlos A. Dunshee de Abranches apostava que Sepúlveda, "como cidadão mexicano, não poderia deixar de preocupar-se com as possíveis repercussões, em seu próprio país" de questões de "minorias étnicas", dada a importância da temática indígena no México.

Governo nega dimensão do garimpo

Outra parte da estratégia dos militares era negar a proporção da invasão de garimpeiros e atuar para adiar o máximo possível qualquer decisão internacional. Numa carta assinada por João Carlos Nobre da Veiga, presidente da FUNAI, o governo ainda insistia em um tom nacionalista e paternalista:

O Yanomami é, em primeiro lugar, um brasileiro."

Os argumentos que chegaram ao representante brasileiro na OEA, Alarico Silveira, insistiam em apresentar "o suposto quadro jurídico-institucional avançado de proteção aos povos indígenas da ditadura, além de mencionar que as obras da BR-210 estariam paralisadas desde 1974, ao passo que a demarcação das terras Yanomami já teria entrado em sua fase final".

O diplomata brasileiro opinou que quase todos os pontos da denúncia estavam contemplados e que em "condições normais" o caso seria arquivado.

"No intuito de transmitir uma imagem de cooperação que escondesse intenções diversionistas, por um tempo o governo brasileiro informou à CIDH as políticas públicas adotadas, no decorrer do processo, sobre o povo Yanomami", aponta o estudo.

Em março de 1982, o Ministério do Interior promulgou a Portaria/GM/nº.025 que tratava da interdição de área contínua, um passo a mais em direção à demarcação da terra Yanomami, e criava um grupo de trabalho para avançar o assunto.

"A normativa foi publicada como mais uma tentativa de "esvaziar, em boa medida, a própria denúncia formulada perante a Comissão", indicou o estudo.

"Dada a preocupação da ditadura com sua imagem e reputação, era mais um esforço calculado para afastar as críticas. Ou seja, uma concessão tática dissimuladora que não impedia perpetração de novas violações", destacaram os pesquisadores.

Dois anos depois, o Itamaraty alegou que, prevendo projetos de educação e saúde, a FUNAI "avançava decididamente na delimitação do futuro Parque Yanomami, área na qual, diferentemente das acusações dos denunciantes, não havia presença de mineradoras".

"Ao mesmo tempo, o governo afirmou discutir a regulamentação da mineração em terras indígenas, coibindo a presença de garimpeiros ilegais", destaca a pesquisa.

Articulação para adiar e arquivar a denúncia

Por fim, os pesquisadores destacam como diplomacia da ditadura tinha como objetivo arquivar as denúncias contra ela e, quando isso não era possível, trabalhava para protelar a decisão.

"A tática era distanciar, no tempo, o momento da decisão formal sobre as queixas de quando tinham ocorrido os fatos, a fim de diminuir sua repercussão, tal como explicitamente havia sido feito com os casos da década de 1970", apontam.

Nesse aspecto, a colaboração que a ditadura tinha com o secretário-executivo da CIDH, Vargas Carreño, "foi crucial para o trâmite processual da denúncia".

"Os diplomatas brasileiros mantiveram contato regular com ele e a lista dos seus auxílios é extensa", indicam.

O chileno passou informações sobre o andamento dos casos contra o Brasil (dentre os quais o Yanomami);

  • Ele antecipou os procedimentos da secretaria;
  • Adiantou a pauta de discussões da Comissão;
  • Entregou as "observações complementares" dos reclamantes antes de elas serem transmitidas pelos procedimentos regulamentares;
  • Manobrou a relatoria do caso e sugeriu os nomes de Bertrand Galindo ou Andrés Aguilar em substituição à relatoria de Farer, cuja posição era de crítica aberta à ditadura. "As conversas com Vargas Carreño não serviram apenas para informar a ditadura, mas influenciaram o próprio processo decisório, e permitiram que o regime militar desenhasse e calculasse suas estratégias de silêncio e dissimulação para a postergação do caso", destacam os pesquisadores.

A realidade é que, de posse dessas informações, a diplomacia da ditadura podia planejar seus próximos passos processuais e avaliar o clima político na CIDH. "É interessante notar que, se em outros casos Vargas Carreño deu garantias de seu arquivamento aos representantes brasileiros, no caso Yanomami a contínua pressão transnacional dos peticionários e a relevância do tema na agenda da Comissão limitavam-lhe as ações. Mesmo assim, seus encontros com os diplomatas do Brasil foram uma fonte de informação e cooperação contínua", apontam os pesquisadores.

Os documentos ainda revelam que os comissários brasileiros na CIDH foram outra peça central na estratégia do Estado para lidar com os casos contra o país durante toda a ditadura.

"Abranches atuava na Comissão desde 1968 e sua atuação no caso Yanomami foi de íntima cooperação com Brasília até seu falecimento em 1983", diz o estudo.

De fatio, sua atuação foi descrita pela Comissão Nacional da Verdade como informante da ditadura. Seus relatos explicavam o ambiente político e os bastidores da CIDH, apontavam quais comissários eram mais simpáticos ao governo brasileiro e quais se preocupavam com direitos humanos.

"Ele repassou grande parte dos documentos confidenciais produzidos pelos denunciantes ao Estado, o que antecipava o teor das comunicações ao governo brasileiro, concedendo-lhe mais tempo para articulações políticas e preparações formais de defesa", disseram os pesquisadores.

Abranches também articulava apoio ao Brasil entre os próprios membros da Comissão. Quando o primeiro anteprojeto de resolução do caso circulou, por exemplo, ele antecipou posições dos comissários e quais seriam os melhores caminhos processuais para adiar sua votação.

"Sua intervenção era tamanha que, em determinados momentos, ele assessorou diretamente a resposta da ditadura", destaca a pesquisa. O mesmo Abranches bloqueou a tentativa do comissário Monroy Cabra de incluir na ata final de uma reunião da Comissão a decisão de efetuar uma visita do Brasil.

Após o falecimento de Abranches, o Brasil indicou Gilda Russomano para ocupar seu lugar. O repasse de informações, porém, continuou.

"A professora Gilda Russomano acaba de informar que, na reunião desta manhã, conseguiu convencer seus colegas da CIDH a adiar a decisão a respeito dos projetos de relatório e de resolução sobre índios Yanomami", diz um dos documentos secretos do Itamaraty.

Conclusão e ligação com Bolsonaro

Foi somente com o término oficial da ditadura, em 1985, que um organismo internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), emitiu uma recomendação sobre esse contexto e abordou a denegação de território e os abusos perpetrados contra o povo Yanomami nos estados do Amazonas e Roraima, perto da fronteira com a Venezuela.

Para Bruno Bernardi (UFGD) e João Roriz (UFG), a pesquisa é relevante por apontar "paralelos perturbadores entre o passado e o presente".

"Em primeiro lugar, ela mostra como a ditadura militar mobilizava o Itamaraty para abafar e tentar arquivar denúncias internacionais, o que se repetiu no governo Bolsonaro, sempre disposto a negar e desacreditar acusações de violações contra os povos indígenas", destacam.

"Além disso, a pesquisa ajuda a compreender a continuidade do genocídio contra os Yanomami. Ao não levar a sério, no passado, os alertas e recomendações dos organismos internacionais de direitos humanos, o Estado brasileiro criou as condições para a repetição de atrocidades", denunciam os pesquisadores.

"Por meio da garantia da impunidade, do incentivo ao garimpo, à grilagem e ao desmatamento, e do desmantelamento da Funai e de outras estruturas de fiscalização e apoio aos povos indígenas, as necessidades predatórias do "desenvolvimento" econômico produziram mais um genocídio anunciado", disseram.

"Nesse sentido, para evitar a reprodução desse padrão, o Brasil precisa se abrir mais à participação política dos povos indígenas e se engajar fortemente com os mecanismos internacionais de direitos humanos, assumindo compromissos concretos. Não bastam novos discursos: é preciso internalizar novas práticas", completam.