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Jamil Chade

REPORTAGEM

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Saúde alerta para riscos ao SUS, e Lula acena para revisão de acordo com UE

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto - 29.mai.2023 - Marcelo Camargo/Agência Brasil
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebe o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, no Palácio do Planalto Imagem: 29.mai.2023 - Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

29/05/2023 14h18

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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro que o acordo com a União Europeia, nos atuais moldes propostos por Bruxelas, representa um obstáculo e poderá ser reavaliado. Durante a coletiva de imprensa nesta segunda-feira ao lado de Nicolas Maduro, presidente da Venezuela, Lula sinalizou que não "entregará" o setor de licitações públicas no entendimento entre o Mercosul e a Europa.

"Temos um problema com a UE que vamos só ver", disse o brasileiro. Segundo ele, na noite de sexta-feira, uma reunião foi realizada com empresários e um dos pontos debatidos foi a abertura do mercado nacional de compras governamentais para os europeus.

"Os empresários sabem que há uma coisa que o Brasil não pode entregar, que é o setor de compras governamentais", disse Lula. "O que vai sobrar para a pequena e medias empresas? Nada", afirmou o presidente, numa mensagem ao vice-presidente Geraldo Alckmin.

O tratado foi assinado entre os dois blocos em 2019 ainda sob o governo de Jair Bolsonaro, mas o processo vive um impasse e o acordo jamais entrou em vigor. Uma parcela do governo Lula estima que, na pressa para fechar o entendimento, Brasília cedeu em pontos considerados como estratégicos, como no caso da indústria nacional de remédios.

Embate dentro do governo

No início do governo, Lula já indicou que queria fechar o acordo comercial com a Europa até meados de 2023. Mas a lista de impasses é ainda importante, mesmo dentro do governo brasileiro. Não por acaso, nos últimos meses, o presidente deixou de falar em datas para a conclusão do tratado.

Um deles é a abertura ao mercado de compras governamentais, permitindo que empresas europeias possam competir de igual para igual em licitações públicas no Brasil. Um mercado avaliado em US$ 150 bilhões por ano.

O embate também ocorria dentro do governo. Uma ala queria fechar o entendimento herdado de Bolsonaro, alegando que os benefícios para os exportadores seriam importantes. Mas outro segmento dentro do Executivo alertou para os riscos de uma maior vulnerabilidade ao SUS e de setores do setor público.

Com uma pressão por parte do Ministério da Saúde, o tema acabou sendo levado para a Casa Civil para que o Palácio do Planalto arbitrasse.

Agora, o tema ganhou um novo capítulo nesta segunda-feira, com Lula sinalizando que pode colocar seu peso político no grupo daqueles que questionam a liberalização.

Nesta semana, o Brasil já irá retirar a oferta que o ex-presidente Jair Bolsonaro havia feito aos países ricos, no âmbito da OMC e também sinalizando a abertura do mercado de licitações públicas.

O que prevê o acordo

Pelo acordo com os europeus, pequenas e médias empresas nacionais teriam uma margem de vantagem. Mas ainda assim, em uma escala insuficiente.

Durante as negociações, exceções foram criadas em alguns setores para proteger as empresas brasileiras. Mas, quando o novo governo Lula assumiu, a constatação é de que tais mecanismos não são suficientes.

Na avaliação interna do governo, se efetivado, o acordo colocaria em risco políticas públicas necessárias ao SUS.

Após a guerra por respiradores, vacinas, testes e outros remédios durante a pandemia da covid-19, governos em todo o mundo abriram um intenso debate sobre as políticas de abastecimentos para seus respectivos setores de saúde e hospitais.

A constatação de dezenas de países foi de que, sem uma indústria nacional, sociedades inteiras ficaram dependentes e vulneráveis ao abastecimento externo.

70% dos remédios do SUS produzidos no Brasil em 10 anos

No mês passado o governo Lula anunciou a retomada de mecanismos que tinham sido criados em 2008 para construir uma política nacional de abastecimento de remédios e inovação, conhecido como Grupo Executivo do Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

O mecanismo foi fechado por Bolsonaro. Agora, Lula colocou como objetivo que 70% dos medicamentos, equipamentos e vacinas que abasteçam o SUS até 2033 seriam produzidos no país.

Reduzir o déficit comercial de remédios foi sempre um objetivo, nos dois primeiros mandatos de Lula como presidente. Hoje, porém, o Brasil importa 90% de todo o insumo para remédios e vacinas.

No total, o déficit comercial do setor da Saúde é de US$ 20 bilhões. A única área da economia que soma um déficit ainda maior é de eletrônicos.

Acordo com UE ameaça política de inovação

Agora, membros do governo Lula estimam que o risco com o novo acordo com a UE é de que o tratado acabe com a política nacional de inovação e tecnologia em saúde e com o novo marco para inovação.

O UOL apurou que o mandato para que o Itamaraty negociasse esse acordo foi aprovado em meados de 2018. Mas passou por cima das posições do Ministério da Saúde e pelo Ministério de Ciência e Tecnologia.

Quando Bolsonaro assumiu, um ano depois, pode seguir adiante com a negociação, sem voltar a consultar os demais órgãos. Dentro do novo governo, o temor é de que os europeus encontrem vasta facilidade para ficar com contratos em enormes licitações abertas nos próximos anos.
Existem elementos específicos no acordo que garantem períodos de transição e permitem que algumas das aberturas ocorram apenas em oito ou quinze anos.

Mas na avaliação do atual governo, isso não pode ser chamado de "flexibilidade". O entendimento seria apenas para dar tempo para reverter a política brasileira e acabar com os instrumentos de fortalecimento do SUS, seja pela produção local ou pela inovação.

Entre diplomatas e membros do Ministério da Saúde, as exceções estabelecidas no texto do acordo não são suficientes e não cobre todos os pontos da política e inovação.

Alguns chegam a alertar que, para preservar a política industrial no setor de remédios, a única solução seria retirar o Ministério da Saúde por completo do acordo e desobrigá-lo a abrir contratos sempre para todas as empresas europeias.

Mas, segundo fontes, vários dos negociadores que atuaram no acordo em 2019 formavam parte da equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes. E continuam hoje no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio.