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Lula e papa aproximam posições sobre guerra, e antagonizam com o Ocidente
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O presidente Luiz Inácio Lula da Silva viaja nos próximos dias ao Vaticano e, com o papa Francisco, levará uma agenda dominada pela questão do combate à fome e o clima. Mas é ainda a situação ucraniana que aproxima os dois líderes e, ao mesmo tempo, os antagoniza diante das potências ocidentais.
Ao longo dos últimos anos, Francisco e Lula têm mantido uma relação cordial. O papa recebeu o brasileiro antes de iniciado o auge da campanha eleitoral e, em entrevistas, criticou abertamente a prisão de Lula.
Mas o assunto agora sobre a mesa é outro. Diplomatas brasileiros consideram que existem pontos em comum entre a postura do papa e de Lula sobre a guerra.
O pontífice não deixou de condenar a invasão. Mas declarou que a guerra estava sendo "alimentada por vários impérios", e não apenas o russo. A frase ecoa com a mesma lógica apresentada por Lula, de que o Ocidente também precisa considerar sua responsabilidade na expansão da OTAN e as preocupações legítimas de segurança dos russos.
Outro ponto que revela visões coincidentes é a postura tanto de Lula como do papa Francisco sobre o plano de paz estabelecido por Kiev. Em maio, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, esteve com o pontífice e pediu o apoio da Santa Sé ao seu plano de paz. Entre os pontos está a retirada imediata de todas as tropas russas de seus territórios, como parte da condição para iniciar uma negociação.
Fontes em Roma revelaram que o papa reagiu com frieza ao pedido de Zelensky, chegando a dizer que a questão dos territórios teria de ser lidada "de forma política".
Um mês antes, o ucraniano fez o mesmo pedido para Lula. O brasileiro foi numa linha similar ao do papa e apontou que não existem planos unilaterais de paz. Ou seja, qualquer medida para acabar a guerra terá de envolver os russos.
Outro aspecto da relação entre Lula e o papa é a insistência na manutenção de um esforço para abrir canais de diálogo, ainda que Zelensky tenha alertado em Roma que não se pode "equiparar" os agressores e as vítimas.
Francisco nomeou um enviado para a Ucrânia, conhecido por seu trabalho de décadas de mediação de conflitos da Igreja Católica. O escolhido para a tarefa, cardeal Matteo Zuppi, defende a criação de uma cultura de paz para responder à "profunda ansiedade, às vezes não expressa, muitas vezes não ouvida, de povos que precisam de paz".
Ele foi enviado para Kiev nos últimos dias, na esperança de buscar espaços para que um diálogo possa ocorrer. Sua missão era a de "ajudar a aliviar as tensões no conflito na Ucrânia, na esperança incessante do Santo Padre de que isso possa iniciar caminhos de paz".
Zuppi é arcebispo de Bolonha, presidente da Conferência Episcopal Italiana e ajudou a mediar os acordos de paz da década de 1990 que puseram fim às guerras civis na Guatemala e em Moçambique. Ele ainda chefiou a comissão que negociou um cessar-fogo no Burundi em 2000.
Papa isolado ou atualizado com o novo mundo?
A postura do papa, assim como a de Lula, causou profundo mal-estar entre as potências ocidentais, que esperavam o peso de Francisco no isolamento de Moscou.
Para o vaticanista Marco Politi, "nunca nos últimos 60 anos a Santa Sé esteve tão marginalizada num debate internacional como agora".
O americano John L. Allen Jr, editor da Crux e também vaticanista, tem uma visão diferente. Em um recente artigo, ele declarou que "as ações de Francisco não são arbitrárias nem irracionais".
"Elas são uma resposta deliberada à forma como a Igreja Católica está mudando - e continuará mudando - no século XXI", alertou. "Mais do que nunca, os católicos vivem fora do Ocidente e não veem a guerra na Ucrânia nos mesmos termos que a Europa e os Estados Unidos. Entendida sob esse prisma, a posição de Francisco prevê o futuro da Igreja como uma força geopolítica, que será muito menos complacente com o Ocidente", constatou.
Os números confirmam a posição do vaticanista.
- Em 1900, existiam 267 milhões de católicos no mundo, dos quais mais de 200 milhões estavam na Europa e na América do Norte.
- Em 2000, havia quase 1,1 bilhão de católicos no mundo, mas apenas 350 milhões deles eram europeus e norte-americanos.
Ainda assim, o posicionamento "representa uma ruptura dramática com a filosofia tradicional do Vaticano".
"Historicamente, a Santa Sé tem praticado o que os acadêmicos chamam de modelo de diplomacia de "grande potência", associando-se à superpotência do momento", disse.
"Ao longo dos séculos, isso significou alianças de fato com o Sacro Império Romano, a monarquia francesa e o império austro-húngaro. Durante a maior parte do século XX, Roma se uniu às potências ocidentais, tanto que o Papa Pio XII, o papa durante a Segunda Guerra Mundial, e um feroz anticomunista, foi apelidado de "o capelão da OTAN", numa referência a João Paulo II.
Vaticano Multipolar
Em sua visão, Francisco agora "adotou o que pode ser visto como a primeira estratégia geopolítica multipolar do Vaticano".
"Em vez de seguir o consenso ocidental, Francisco buscou aliados não tradicionais em sua busca por uma solução na Ucrânia, como o primeiro-ministro autoritário da Hungria, Viktor Orbán, em parte para evitar antagonizar a Rússia", disse.
"Nesse sentido, o papa e seus principais assessores pediram uma versão do século XXI do processo de Helsinque, um esforço diplomático para reduzir as tensões durante a Guerra Fria que reuniu um conjunto diversificado de nações orientais e ocidentais", completou o vaticanista.
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