Pós-covid, países ricos bloqueiam acesso à tecnologia e produção de vacina
Quatro anos depois da pandemia que colocou o mundo de joelhos e somou 17 milhões de mortes extras, países ricos resistem em aceitar um acordo se comprometendo com o compartilhamento de tecnologia no setor de saúde e a distribuição da produção mundial de vacinas e outros remédios.
Na presidência do G20, o governo brasileiro tenta agora salvar o processo negociador e fechar um entendimento de princípios para evitar um fracasso internacional.
A partir de segunda-feira, a OMS (Organização Mundial da Saúde) inicia a última fase de negociações para a criação de um tratado que determinaria regras sobre como a comunidade internacional irá reagir, caso uma nova pandemia ecloda. A meta era anunciar o novo acordo no final de maio, numa reunião entre todos os ministros da Saúde do mundo em Genebra.
Mas, permeado por campanhas de desinformação, acusações mútuas e uma forte pressão da indústria farmacêutica, o projeto que era considerado como revolucionário ameaça naufragar. Para Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, "as próximas gerações não nos perdoarão" se a negociação fracassar.
A iniciativa havia sido liderada, a princípio, pelos europeus que, há dois anos, propuseram o lançamento das negociações. Tanto os governos como a OMS e especialistas admitiram que o mundo fracassou em dar uma resposta à covid-19. Um dos diagnósticos feitos era de que não existiam regras que permitissem uma estratégia global coordenada.
O prazo estipulado para que um acordo fosse fechado foi maio de 2024. Mas, entrando em sua reta final, o processo diplomático vive um profundo impasse.
Nas reuniões abertas ao público, a UE (União Europeia), os EUA e o Japão afirmam que estão comprometidos com um acordo que fortaleça a capacidade do mundo de enfrentar pandemias. Mas, segundo diplomatas, assim que as portas se fecham e a negociação passa a ser confidencial, esses governos rejeitam qualquer iniciativa ou artigo que estabeleça a necessidade de que haja uma transferência de tecnologia no setor de saúde, em caso de pandemia. Ou que haja uma estratégia de diversificação da produção de vacinas, para que países em desenvolvimento tenham seus centros de produção.
Negociadores de países emergentes agora acusam os países ricos de se recusar a abrir mão do status quo e de lutar por manter o monopólio de suas indústrias farmacêuticas.
Durante a pandemia, um dos maiores obstáculos foi a concentração de doses nas mãos de poucos países que, por terem a produção e recursos, acumularam estoques para vacinar três vezes suas respectivas populações.
Enquanto isso, os países mais pobres esperaram meses até que as primeiras doses fossem enviadas. Naquele momento, o presidente sul-africano, Cyril Ramaphosa, chegou a acusar os países ricos de repetir a relação colonialista.
Na OMC (Organização Mundial do Comércio), EUA, Alemanha e outros ainda se recusaram a aceitar abrir mão das patentes dos imunizantes, o que permitiria que versões genéricas fossem produzidas.
Em negociações privadas, empresas multinacionais exigiram de países pobres seguros milionários e garantias de Estado para entregar doses, ampliando a dependência externa dessas economias.
Ao final da pandemia, os dados revelaram a dimensão da desigualdade. Segundo a consultoria Airfinity, expirou a validade de estoques avaliados em US$ 1,1 bilhão do antiviral contra a covid-19 Paxlovid.
Ainda em 2022, a mesma empresa chegou a alertar que 1 bilhão de doses de vacinas poderiam ter sido desperdiçadas, seja por falta de cuidado no uso ou por término do prazo de validade.
Enquanto isso, o informe da entidade Somo destacou que, juntas, Pfizer, BioNTech, Moderna e Sinovac somaram US$ 90 bilhões em receitas com as vendas das vacinas, entre 2021 e 2022.
A esperança de países como o Brasil e outros emergentes era de que, num eventual tratado, essas condições fossem esclarecidas. Mas, pelo menos por enquanto, isso não tem ocorrido.
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberNa última versão do rascunho do tratado, obtido pelo UOL, não há qualquer garantia de que os emergentes terão acesso.
Ainda assim, os países ricos insistem que querem que um acordo estabeleça a necessidade e obrigatoriedade de que todos os governos entreguem patógenos, assim que um surto for estabelecido. Na covid-19, uma das críticas à China foi por causa da sua recusa em dar informações de imediato sobre o que estava ocorrendo e o que era aquele vírus.
O tratado também irá impor que haja maior vigilância por partes das autoridades. Os países em desenvolvimento, onde grande parte das florestas tropicais existem, estão de acordo. Mas querem garantias de que os eventuais remédios produzidos pelas multinacionais que receberão as amostras serão entregues a eles, sem custos ou com condições favoráveis. De acordo com diplomatas, os ricos se recusam a aceitar essa condição.
Também é estabelecido no tratado que países terão obrigação de se preparar de uma maneira consistente em seus respectivos sistemas de saúde. Para as economias mais pobres, essa obrigação só pode existir se recursos extras forem disponibilizados para que esses governos possam investir em saúde. Mas, uma vez mais, não há garantias por parte dos países ricos de que isso ocorrerá.
Diplomatas admitiram existir o temor de que, uma vez concluído o acordo, a situação dos países mais pobres fique ainda mais difícil que hoje. Eles terão novas obrigações, mas nenhum novo apoio.
Brasil convoca G20 e busca ser ponte
Ao longo da negociação, o governo brasileiro tem alertado que o tratado não deve ser apenas mais um mecanismo internacional. Mas sim um acordo que, de fato, garanta uma resposta global para "situações extraordinárias". Nesse caso, portanto, o tratado também precisa prever "respostas extraordinárias".
Ao longo dos dois anos de negociação, o Brasil tentou atuar como uma ponte entre os diferentes grupos. Mas sempre defendendo a tese do maior acesso a tecnologia e vacinas.
No último dia 13, diante da crise na negociação, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, convocou, na sua condição de Presidente do Grupo de Trabalho de Saúde do G20, uma reunião extraordinária dos Ministros da Saúde do Grupo para discutir o acordo.
O que o Brasil tenta fazer, neste momento, é salvar o processo e permitir que exista pelo menos um acordo de princípios em maio. O restante e os detalhes poderiam continuar sendo negociados pelos próximos dois anos.
Ao final do encontro desta semana, os governos concordaram que o futuro tratado precisa ser "ambicioso, equilibrado e eficaz". Mas não existe qualquer compromisso por parte dos países ricos de que isso signifique uma mudança real no acesso.
Durante o encontro, delegações como a da Suíça —sede de algumas das maiores empresas farmacêuticas do mundo— revelaram sua resistência ao projeto dos países em desenvolvimento.
Torrente de desinformação e ataques da extrema direita
Para Tedros, um dos objetivos do novo tratado seria desmontar a tese do filósofo e escritor franco-argelino Albert Camus que, em seu livro "A Peste", escreveu:
"Houve tantas pragas quanto guerras na história, mas sempre as pragas e as guerras pegam as pessoas igualmente de surpresa."
O chefe da OMS alerta que parte da crise na negociação ocorre por causa da "torrente de fake news, mentiras e teorias da conspiração". Para ele, trata-se de uma "campanha orquestrada e sofisticada" de desinformação para impedir que haja um acordo.
Entre as teorias veiculadas nas redes sociais está a de que o tratado iria suspender a soberania dos países e que, a partir de agora, a OMS poderia entrar em um país a qualquer momento para investigar um surto. Nada disso está sendo negociado.
Grupos de extrema direita e ultraconservadores ligados ao trumpismo, nos EUA, também passaram a atacar o tratado. Uma dessas entidades é a ADF, grupo norte-americano que mantém inclusive contatos com a senadora Damares Alves, ex-ministra do governo Bolsonaro.
Num comunicado, a entidade alerta sobre o fato de que o rascunho do acordo atacaria a liberdade de expressão por determinar que governos lidem com "informações falsas durante surtos de doenças".
No Brasil e nos EUA, a extrema-direita foi uma das responsáveis por disseminar a ideia de que a cloroquina poderia funcionar, o que não é verdade, divulgaram notícias falsas sobre a vacina e fizeram circular a tese que a pandemia se tratava de um plano chinês contra o Ocidente.
Para Tedros, a história mostra que uma nova pandemia vai acontecer. "E, da forma que estamos, o nosso mundo continua despreparado", alertou. Tedros insiste que, como a geração que atravessou a covid-19, os atuais líderes têm a "responsabilidade coletiva de proteger as gerações futuras do sofrimento que vivemos".
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