Jamil Chade

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Reportagem

'O maior roubo da história': o dia em que Assange me explicou a internet

Em 2013, Julian Assange estava exilado na embaixada do Equador em Londres e aceitou me conceder uma entrevista. Não se falava ainda em desinformação, o termo fake news era apenas uma referência à instrumentalização dos ataques do nazismo contra a imprensa, o debate sobre a regulamentação era incipiente e o foco era a capacidade da internet de vigiar a todos.

Mas Assange já havia entendido como o sistema funcionava. Para ele, a web redefiniu as relações de poder no mundo, se transformou no "sistema nervoso central hoje das sociedades" e chega a ser mais determinante que armas. O problema, segundo ele, é que esse poder está se virando contra as populações.

Apesar de aparentar relaxado, Assange não escondia a palidez de sete meses dentro de um escritório. Mal sabia ele que o calvário perduraria mais uma década, entre a embaixada e prisões de segurança máxima.

Em junho de 2012, o ativista optou por pedir asilo ao Equador, diante de sua possível deportação para a Suécia. Segundo ele, a decisão de pedir refúgio ao governo de Quito teve como meta evitar sua extradição da Suécia para os EUA, onde seria julgado pela difusão de documentos secretos. O Equador lhe concedeu asilo. Mas a polícia britânica indicou que, assim que ele pisasse para fora da embaixada em direção ao aeroporto, seria detido. O resultado foi um confinamento que durou anos.

Contudo, essa situação não o deixou menos polêmico. Assange disse em 2013 que, ao colocar informações em redes sociais, internautas pelo mundo estão fazendo um trabalho de graça para a CIA.

Hoje, o Google sabe mais sobre você que sua mãe. Esse é o maior roubo da história.
Julian Assange, em 2013

Eis os principais trechos da entrevista:

Chade - A Internet é o símbolo da emancipação para muitos e foi apresentada como a maior revolução já feita. Mas agora o sr. traz a ideia de que há uma contra-ofensiva a isso tudo. O sr. considera que a Internet está em uma encruzilhada?

Assange - Diferentes tecnologias produzem mais poder para estruturas existentes ou indivíduos, e isso tem sido a história do desenvolvimento tecnológico, ao ponto que podemos ver a história da civilização humana como a história do desenvolvimento de diferentes armas de diferentes tipos. Por exemplo, quando rifles, que podiam ser obtidos por pequenos grupos, eram as armas dominantes, ou navios de guerra ou bombas atômicas. E isso define a relação de poder entre diferentes grupos de pessoas pelo mundo. Desde 1945, a relação entre as superpotências dominantes tem sido definida por quem tem acesso às armas atômicas.

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Mas o que ocorre agora é que a internet é tão significativa que está começando a redefinir as relações de força que antes eram definidas pelos diferentes sistemas de armas que um país tinha. Isso porque todas as sociedades que têm qualquer desenvolvimento tecnológico, que são as sociedades afluentes, se fundiram totalmente com a internet.

Portanto, não há uma separação entre o que nós pensamos normalmente que é uma sociedade, indivíduos, burocracia, Estados e internet. A internet é o alicerce da sociedade, suas artérias, os nervos e está conectando os Estados por cima das fronteiras. A internet é um centro — se não for o centro — da nossa sociedade. Ela está envolvida na forma que uma sociedade se comunica consigo mesma, como se comunica entre elas. Não é só simplesmente um sistema de armas ou fonte energia. Não é certo pensar como se fosse o sangue da sociedade. É o sistema nervoso central da sociedade.

Portanto, se há um problema na internet, há um problema com o sistema nervoso da sociedade.

Víamos antes a internet como uma força libertadora, que garantia informação e, mais importante ainda, conhecimento às pessoas que não tinham informação. Conhecimento é poder. Outras coisas também são poder. Mas ela deu muito poder a pessoas que antes não tinham poder. E não apenas mudou a relação entre os que têm poder e aquelas que não têm, dando conhecimento àqueles que não tinham conhecimento, mas também fez todo o sistema funcionar de forma mais inteligente. Todos passaram a poder tomar decisões mais inteligentes e puderam passar a cooperar de forma mais inteligente.

Agindo contrário a essa força está a vigilância em massa criada por parte do Estado.

De que forma estaria ocorrendo essa vigilância em massa?

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As sociedades se fundiram com a internet, diante do fato de que comunicações entre os indivíduos ocorrem pela internet, os sistemas de telefone estão na internet, bancos e transações usam a internet. Estamos colocando nossos pensamentos mais íntimos na internet, detalhes de comunicações e mesmo entre marido e mulher, nossa posição geográfica. Enfim, tudo está sendo exposto na internet. Isso significa que grupos que estão envolvidos em vigilância em massa têm conseguido realizar uma transferencia em massa de conhecimento em sua direção. Os grupos que já tinham muito conhecimento agora têm mais.

Esse é o maior roubo que de fato já ocorreu na história. Essa transferência de conhecimento, de todas as comunicações interceptadas para agências nacionais de segurança e seus amigos corporativos.

A tecnologia desenvolvida para essa vigilância em massa está sendo vendida por empresas de países como a França, que vendeu um sistema de vigilância para o regime de Kadafi. Na África do Sul, há um sistema desenhado para gravar de forma permanente todas as ligações que entram e saem do país por apenas US$ 10 milhões por ano.

Está ficando muito barato. A população mundial dobra a cada 20 anos. O custo de vigilância está caindo pela metade a cada 18 meses.

Mas, justamente o sr. citou Kadafi. Muito acreditam que a Primavera Árabe só ocorreu graças à internet. Não teria sido esse o caso?

Há uma série de histórias tradicionais de um longo trabalho de ativistas, de sindicatos e até de clubes de futebol que tiveram um papel importante na Tunísia e no Egito, os Ultras. O que é realmente novo? Bom, algumas coisas: o ativismo pan-arábico é algo novo e potencializado pela web. Ativistas de diferentes países se conectaram entre si pela web, trocando dicas, identificando quem era bom e quem era mau. O movimento dos ultras foi da Itália para os clubes da Tunísia e Egito. Como? Pela internet.

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Então há o Wikileaks jogando muita informação, e essa informação foi atacada pelo regime na Tunísia e depois pelo Egito. Mas também foi disseminada pelo Egito e Tunísia. Mais importante ainda, essa informação foi disseminada para fora desses países, a tal ponto que ficou difícil para os Estados Unidos e Europa defenderem seus tradicionais aliados.

O sr. aponta para o poder de redes como Facebook e Google. Como é que se tornaram tão poderosos e como é que são, como o sr. diz, usados contra civis?

O Google, essencialmente, sabe o que você estava pensando. E sabe também [o que você pensou] no passado. Porque quando você tem algum pensamento sobre algo, quer saber algum detalhe, você busca no Google. Sites que têm Google Ads, que na verdade são todos os sites, registram sua visita. Portanto, o Google sabe todos os sites que você visitou, tudo o que você buscou, se você usou Gmail ou email. Então ele te conhece melhor que você mesmo. Um exemplo: você sabe o que você buscou há dois dias, há três meses? Não. Mas o Google sabe. O Google conhece você melhor que sua mãe. Claro, mas alguém pode dizer: "o Google só quer vender publicidade. Portanto, quem se importa que eles estejam fazendo isso?" Mas, na realidade, todas as agências de inteligência americana e de aplicação da lei têm acesso ao material do Google. Eles acessaram isso em nosso caso.

Como fizeram isso?

Eles usaram instrumentos como cartas da Agência de Segurança Nacional (NSA) e mandados para buscar os dados de email das pessoas envolvidas em nossa organização. Isso saiu do Google, da conta do Twitter, onde pessoas entraram para acompanhar a nossa conta. No caso do Facebook, é algo impressionante. As pessoas simplesmente estão fazendo bilhares de centenas de horas de trabalho gratuito para a CIA. Colocando na rede todos os seus amigos, suas relações com eles, seus parentes, relatando o que estão fazendo, dizendo que viu aquela pessoa naquela festa, aquela pessoa naquela loja. É um incrível instrumento de controle. Países como a Islândia tem uma penetração do Facebook de 88%. Mesmo que você não esteja no Facebook, você pode ter certeza que seu irmão está e está falando sobre você, ou sua namorada está falando sobre você. Não há como escapar. Agora, uma organização como Facebook diz que são as pessoas que querem fazer isso.

Claro, essa é justamente a minha questão: como o sr. explica que pessoas de diferentes culturas e religiões estão dispostas a revelar suas vidas diante da web?

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Sobre o que você está sendo paranoico? Você pode dizer: "estou fazendo isso de forma voluntária e é mais importante estabelecer conexões sociais que se preocupar com um aparato de um estado totalitário". O problema é que isso não é verdade. As pessoas dizem que querem compartilhar algo apenas com meus amigos e amigos de meus amigos, mas não com meus amigos e com a CIA. É uma fraude o que está ocorrendo. As pessoas estão sendo enganadas para desenvolver essa atividade.

Entendo esse ponto claramente. Mas estamos vendo também censura na China, no Irã e em Cuba, países que parecem estar de fato mais temerosos sobre a internet. Isso não mostraria que a web é mais ameaçadora para esses regimes que para os civis?

Acho que você não pode generalizar "esses regimes". Temos de olhar cada um deles de forma apropriada. Pessoas censuram por um motivo. Censuram porque têm medo, ou porque querem ter mais poder. Normalmente, eles querem manter seu poder. Porque o Irã censura? Porque teme que pessoas dentro do Irã sejam influenciadas por material em persa publicado fora do Irã. E quem publica isso? Bom, alguns são de dissidentes genuínos. Mas também existem empresas de fachada, criadas pelos israelenses, pelos Estados Unidos. Isso é um fato. Inclusive pela BBC em persa. Denunciamos essas empresas de fachada no Wikileaks e suas estruturas de financiamento, e até mesmo empresas israelenses. Agora, é algo saudável que governos estejam temerosos do que as pessoas pensam. Estranhamente, é um sinal otimista que a China, com toda sua censura e vigilância, ainda esteja com medo do que sua população pense. Por exemplo, a China baniu o Wikileaks em 2007. Pelo que sabemos, foi o primeiro país a banir. Temos tido uma espécie de guerra para superar o firewall chinês. De alguma forma, é um sintoma positivo.

Por quê? Esse raciocínio não vai contra seu princípio de liberdade no fluxo de informação?

Sim. Mas é um bom sintoma. Em um país onde as relações são tão fiscalizadas e a vigilância está enraizada a ponto de o poder não precisar se preocupar com o que as pessoas pensam, isso é um problema.

Voltando à questão da liberdade do fluxo de informação. O Wikileaks teve um imenso impacto em alguns países. Mas seus opositores alegam que os documentos foram obtidos de forma ilegal. Como o senhor responderia?

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Generais não definem a lei. Ou pelo menos não deveriam. Se falamos da situação americana, há toda uma série de leis — se quisermos falar de legislação — e foi perfeitamente legal.

A obtenção dos documentos?

Sim, a forma que foram obtidos. Militares americanos não têm direitos na lei americana de encobrir crimes. De fato, isso é algo explícito. Não se pode usar apenas a classificação de documentos para manter um crime sigiloso. Mas também podemos dizer: quem é que fez a lei? Obviamente são os interesses militares. Nós, como editores, temos de levar essas leis à sério? Nós não levamos elas a sério.

Quer dizer, é um conflito sobre onde você estabelece uma fronteira. Muito foi dito sobre isso e muito do que foi dito está filosoficamente falido. Há uma forma simples de entender. Não é Deus que estipula essa fronteira para todos nós. Diferentes organismos têm diferentes responsabilidades. Por vezes, entidades policiais têm a responsabilidade de manter algo secreto. Uma investigação sobre a Máfia deve ser mantida em sigilo. Outras organizações, como editores e jornais, têm a responsabilidade perante o público, que é de publicar informação que ajude o público a decidir e entender o mundo. Essas diferentes responsabilidades não devem ser contaminadas umas pelas outras.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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