Jamil Chade

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Reportagem

'Este não é o fim do Hamas', diz premiado escritor palestino

A morte do líder político do Hamas Ismail Haniyeh pode abrir espaço para vozes mais radicais dentro do movimento palestino. A avaliação é de Mohammed Omer Almoghayer, premiado escritor e jornalista palestino. Considerado um dos principais analistas na região, Omer esta em São Paulo para palestras e eventos.

Em entrevista exclusiva ao UOL, ele conta como perdeu mais de 30 membros de sua família no conflito, defende o papel do Brasil na reconstrução de Gaza e afirma que a ideia de um Estado palestino nunca esteve tão próxima.

Nascido em 1984, em um campo de refugiados, Omer já publicou em jornais como The New York Times e é autor de vários livros traduzidos em 25 línguas, inclusive em português. Doutor pela Universidade de Columbia e pela Erasmus Rotterdam, ele acumula dezenas de prêmios internacionais.

No próximo domingo (4), Omer será um dos principais convidados da Flipei, que neste ano ocorre em São Paulo. Ele ainda fará um debate no Al Janiah (restaurante e centro cultural palestino) e, no dia 10, estará na Livraria Tapera Taperá.

Mohammed Omer Almoghayer, escritor e jornalista palestino
Mohammed Omer Almoghayer, escritor e jornalista palestino Imagem: Dick de Jager - 8.jul.16/International Institute of Social Studies/Divulgação

Leia os principais trechos da entrevista:

Como o sr. avalia o assassinato de Ismail Haniyeh? Esse é um golpe fatal ao Hamas?

O assassinato se enquadra na política muito antiga de Israel de eliminar quaisquer vozes moderadas dentro do Hamas, deixando a arena para os extremistas e "falcões", mantendo assim vivas as justificativas para a continuação da guerra, dos crimes de guerra e das violações.

Essa abordagem vem sendo adotada desde o início da Segunda Intifada (Intifada de Al-Aqsa), e aqueles que a testemunharam sabem o quanto o Hamas mudou após o assassinato de alguns de seus moderados, como Said Siyam e Ismail Abu Shanab, e até mesmo o xeque Ahmed Yassin.

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Portanto, a escalada é esperada e aguardada por Israel, mas, em minha opinião, ela não levará a uma expansão do teatro de guerra. Isso também não implica o fim do movimento —observei esse movimento desde 2000, eles parecem estar preparados para assassinatos de líderes— afinal, esse é um movimento que continua a gerar novos líderes —os próximos podem não ser as vozes moderadas, mas certamente este não é o fim do Hamas.

Qual é a situação de Gaza hoje?

A situação só pode ser descrita como uma prisão murada e um campo de concentração em formação, um lugar onde mais de 2 milhões de seres humanos estão confinados em uma faixa de terra densamente povoada, sujeitos a condições que desafiam a dignidade humana básica. Gaza é um território sitiado por todos os lados, com suas fronteiras rigidamente controladas, seu espaço aéreo e suas águas completamente restritos. Há 17 anos, o povo de Gaza vive sob um bloqueio opressivo, onde todos os aspectos da vida são rigidamente regulados e a liberdade é um sonho distante.

Gaza é como um barril no qual tiros são disparados à vontade. Os habitantes, encurralados e indefesos, estão sujeitos a bombardeios constantes que ceifam dezenas de milhares de vidas, destroem casas, escolas, hospitais e qualquer aparência de normalidade. A população civil sofre o impacto dessa campanha de destruição e assassinato em massa, com crianças crescendo em um ambiente em que o trauma e a perda são as únicas constantes.

Muitas vezes me questiono: o massacre do hospital. O massacre das tendas. O massacre da farinha. O massacre da escola de Khan Younis. O massacre dos trabalhadores humanitários internacionais, o massacre da escola de Nuseirat. Conseguimos manter o controle de todos eles? Ou eles se misturaram em um enorme pesadelo?

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As cicatrizes psicológicas de tal realidade são profundas e duradouras, afetando gerações e lançando uma longa sombra sobre qualquer esperança de um futuro pacífico.

Como sua vida pessoal foi afetada?

Como palestino, minha vida foi profundamente moldada pela experiência do deslocamento, do exílio e da busca incessante por identidade e justiça. Tendo crescido em Gaza, testemunhei o impacto do conflito e da ocupação. Minha família foi forçada a deixar nossa casa durante a Nakba em 1948. Não se tratou apenas de um desenraizamento físico, mas de um profundo transtorno psicológico e emocional. Isso me deu uma profunda sensação de perda e um anseio por uma pátria que fosse um lugar real e imaginário.

Minhas buscas acadêmicas e profissionais foram, sem dúvida, impulsionadas por essas experiências pessoais. A sensação de alienação e a busca por pertencimento alimentaram minha jornada intelectual, levando-me a explorar questões de identidade, colonialismo e política de representação. Escrever meu próximo livro, "On the Pleasures of Living in Gaza" (Sobre os prazeres de viver em Gaza), é uma resposta às representações errôneas e aos estereótipos que atormentaram minha compreensão da região árabe e meu lugar nela.

A luta pelos direitos dos palestinos e as questões mais amplas de justiça e direitos humanos permearam minha vida pessoal e profissional. Minhas atividades muitas vezes tiveram um custo pessoal, sujeitando-me a críticas. No entanto, também trouxe conexões profundas com pessoas que compartilham o compromisso com a justiça e a equidade, incluindo a América Latina, a África e a Ásia.

A vida familiar também foi moldada por essas lutas mais amplas — nos últimos meses, perdi mais de 30 membros da família, incluindo tios e primos mortos por projéteis de tanques e ataques aéreos, inclusive meu tio mais velho, Salah, um homem decente que passou a vida fornecendo soluções de água e saneamento no campo de refugiados de Jabalia, no norte da Faixa de Gaza.

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As experiências compartilhadas de perda, resiliência e esperança em minha família reforçaram meu compromisso de defender aqueles cujas vozes são marginalizadas e cujas vidas são prejudicadas por conflitos e injustiças.

Quais são os principais obstáculos para cobrir esse conflito?

O profundo impacto emocional e psicológico do conflito não pode ser subestimado. Essa conexão pessoal impulsionou meu compromisso, mas também tornou o trabalho emocionalmente exaustivo e, muitas vezes, esmagador.

Meu trabalho lança luz sobre pessoas que conheço, como Hassan, o proprietário do laboratório médico em Rafah e personagem principal do meu próximo livro. Continuo observando dia após dia como a situação o afeta, pois ele perdeu membros da família, o laboratório foi explodido e seus parentes não conseguem acessar o tratamento de saúde contra o câncer.

Outro grande desafio foi lidar com a censura e a propaganda generalizadas — quando se trata da Palestina, é preciso enfrentar a censura, seja no Facebook ou no Instagram, que proíbem o conteúdo — os palestinos tiveram de ser criativos, incluindo a imagem de uma melancia para descrever a bandeira da Palestina.

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Tanto a mídia israelense como a internacional geralmente apresentam retratos tendenciosos ou incompletos da luta palestina, influenciados por agendas políticas e estereótipos. Para superar isso, foi necessário um esforço incansável para apresentar uma imagem precisa e diferenciada das realidades locais.

Qual tem sido o papel da imprensa internacional em dar voz às vítimas?

A atual campanha de matança e destruição em massa em Gaza foi acompanhada mundialmente de fato em tempo real, principalmente por meio da mídia social, que desempenhado um papel fundamental para contornar as barreiras tradicionais à informação, fornecendo uma janela imediata e sem filtros para os horrores da guerra.

Entretanto, o papel da imprensa tradicional, que permanece em grande parte ausente, não pode ser ignorado. A recusa de Israel em permitir a entrada de jornalistas internacionais em Gaza criou um vazio significativo na cobertura do conflito. A presença de jornalistas experientes e organizações de notícias estabelecidas é indispensável para contextualizar os eventos, verificar os fatos e fornecer a análise essencial para compreender a situação.

A mídia social preencheu essa lacuna, mas ela vem com seu próprio conjunto de desafios. O imediatismo e a crueza das informações compartilhadas nessas plataformas, embora poderosos, às vezes podem não ter a profundidade e o contexto que o jornalismo profissional oferece. Além disso, a disseminação de desinformação e propaganda é um risco constante, tornando difícil para o público global discernir a verdade em meio à cacofonia de narrativas conflitantes.

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Apesar desses desafios, as atualizações em tempo real e os testemunhos pessoais compartilhados pelos habitantes de Gaza foram fundamentais para humanizar o ataque, trazendo a dura realidade da guerra para as salas de estar das pessoas em todo o mundo.

Mas houve alguns dias assustadores nos primeiros quatro meses, em que cada voz se tornou um alvo, seja um jornalista ou um ativista de mídia social — qualquer pessoa com uma câmera e uma voz foi alvo ou forçada a deixar Gaza e se estabelecer. Perdemos 165 jornalistas e mais de mil de suas famílias. Pense nisso: não só você, como jornalista, tem de pagar o preço por sua profissão, mas também a família, as crianças e os idosos ao seu redor são prejudicados por causa dessa escolha.

E qual é a sua opinião sobre a cobertura da mídia ocidental sobre o conflito?

A mídia ocidental geralmente apresenta um viés em relação a Israel, refletindo as alianças geopolíticas e as influências que moldam suas narrativas. Esse preconceito se manifesta no foco desproporcional nas perspectivas israelenses, nas preocupações com a segurança e nas justificativas para a opressão, enquanto a narrativa palestina de ocupação, deslocamento e resistência é marginalizada ou apresentada de forma negativa. Esse desequilíbrio distorce a percepção pública e o discurso político em favor de Israel.

A ocupação das terras palestinas é frequentemente apresentada como uma série de incidentes isolados, em vez de uma luta prolongada enraizada em uma história complexa de colonialismo, desapropriação e resistência. A omissão desse contexto histórico crucial impede uma compreensão mais profunda das causas e das consequências da ocupação na vida dos palestinos, o que leva a reportagens superficiais e enganosas.

Um fator que tento desafiar em meu próximo livro é a forma como os palestinos são frequentemente retratados por meio de estereótipos redutores e desumanos, retratados como terroristas ou como vítimas passivas. Essas representações desnudam o povo e a humanidade do povo palestino, ignorando sua rica cultura, sua história e as queixas legítimas que impulsionam sua luta por justiça e autodeterminação. As vozes palestinas que desafiam a narrativa pró-Israel são frequentemente censuradas ou marginalizadas na mídia ocidental, se não forem mortas, presas ou exiladas.

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O resultado é um discurso de mídia restrito e limitado que exclui perspectivas essenciais. Os esforços de relações públicas e a propaganda israelense desempenham um papel fundamental na formação da cobertura da mídia ocidental, geralmente por meio de pressão ou intimidação.

Israel é excelente em ocultar toda a verdade, como ilustrado pela visita do Papa Francisco a Belém em 2014, se bem me lembro. A visita foi meticulosamente orquestrada para garantir que o papa visse a Cisjordânia sem se deparar com o muro que separa os locais sagrados em Belém daqueles em Jerusalém.

Mas Israel sofreu um ataque do Hamas, no dia 7 de outubro de 2023, com mais de mil vítimas. Como o sr. avalia isso?

Para entender o ataque das facções armadas palestinas contra Israel, é preciso abordá-lo com uma perspectiva matizada e contextualizada, reconhecendo tanto os eventos imediatos como as questões sistêmicas mais profundas que sustentam o conflito israelense-palestino.

É essencial reconhecer que esses ataques, embora condenados por sua violência e pelos danos que infligem aos civis, não ocorrem em um vácuo. Eles fazem parte de um ciclo de violência e retaliação de longa data, enraizado em décadas de ocupação, desapropriação e resistência. Em outras palavras, a ocupação da Palestina não começou em 2023 — na realidade, tudo começou quando Israel, apoiado pelas potências ocidentais, expulsou os palestinos de suas casas, o que inclui minha própria família, que fugiu de Yibna sob a mira de armas em 1948.

Antes de outubro de 2023, as condições terríveis em Gaza — caracterizadas por um bloqueio incapacitante, ataques militares frequentes e pobreza generalizada, ataque a milhares de prisioneiros palestinos em prisões israelenses, expansão de assentamentos exclusivamente judaicos em casas palestinas — criam um ambiente em que o desespero alimenta tais atos de violência.

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Há um caminho acordado internacionalmente, mas recusado por Israel: a solução de dois Estados.

Uma paz sustentável só pode ser alcançada por meio de uma resolução justa que reconheça os direitos e as aspirações palestinas, acabe com a ocupação e aborde a questão dos direitos humanos.

O Tribunal Penal Internacional é a resposta para os crimes cometidos?

Em princípio sim, mas embora o TPI tenha o potencial de contribuir para a responsabilização pelos crimes cometidos no conflito israelense-palestino, sua eficácia dependerá de sua capacidade de operar com imparcialidade, da cooperação dos Estados e de sua disposição de confrontar interesses políticos poderosos.

O fato de Israel não ser signatário do Estatuto de Roma representa um obstáculo significativo à jurisdição do TPI sobre supostos crimes cometidos por cidadãos israelenses. Embora o TPI possa investigar crimes nos territórios reconhecidos sob a autoridade palestina, o alcance do tribunal é limitado pela falta de cooperação dos principais atores e Estados.

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A busca pela justiça exige um tribunal que seja capaz de operar livre de influências externas e considerações políticas. Para isso, precisamos de novos rostos para assumir a liderança, pois os EUA estão claramente do lado da ocupação e não podem desempenhar nenhum papel que apoie o povo palestino e seus direitos; o Brasil assumiu uma posição de apoio à Cisjordânia, mas não pode fazer isso.

O Brasil assumiu uma posição de apoio à causa palestina. Como o país é considerado pela população local e pelo governo?

A posição do Brasil se destaca em contraste com as posições frequentemente mais equivocadas ou de apoio de muitas nações ocidentais em relação a Israel. Essa divergência é notada e apreciada pelos palestinos, que sentem que sua causa tem sido frequentemente ofuscada ou prejudicada pela dinâmica política e diplomática ocidental. A disposição do Brasil de assumir uma posição de princípio oferece uma contra-narrativa muito necessária, ressaltando a diversidade da opinião internacional.

Quero deixar claro: esse apoio, embora simbólico, representa um modesto bálsamo para as feridas da população sitiada de Gaza. Lembro-me vividamente do silêncio global naquele dia trágico em que as forças de Israel mataram 90 pessoas no que foi declarado uma "zona humanitária segura". Em contraste, o presidente Lula decidiu defender a justiça e os direitos dos palestinos. Esse ato de solidariedade, embora limitado em seu escopo, é um gesto significativo e louvável diante da inércia internacional generalizada.

O Brasil pode fazer mais para apoiar a luta palestina pela autodeterminação e pelos direitos humanos, o que inclui aspectos práticos como o envolvimento diplomático e a possível cooperação econômica, a abertura de espaços para oportunidades acadêmicas entre a Palestina e o Brasil, bem como o intercâmbio de sindicatos.

Essas ações ajudam a fortalecer a causa palestina no cenário internacional e oferecem benefícios tangíveis às instituições e comunidades palestinas. Nos esforços de reconstrução de Gaza, o Brasil pode desempenhar um papel fundamental no aprimoramento de parcerias econômicas e acordos comerciais que apoiem as empresas palestinas .

O setor privado de Gaza foi esmagado ao longo dos últimos dez meses de ataques — e qualquer apoio do Brasil será de grande valia. O Brasil pode desempenhar um papel na unificação das vozes palestinas — imagino que todos os palestinos respeitariam um chamado do presidente do Brasil para conversações nacionais — que deixariam Israel sem desculpas, a não ser permitir um Estado palestino viável.

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A ideia de um Estado da Palestina está mais próxima ou mais distante?

Mais próxima do que nunca. Israel não pode continuar sua guerra sem fim. A ocupação tem que acabar mais cedo ou mais tarde. O sofrimento e a opressão contínuos vividos por nosso povo ampliaram a defesa moral e política de um Estado palestino independente.

O reconhecimento da Palestina pela comunidade internacional como um Estado observador não membro das Nações Unidas e a crescente simpatia global pelos direitos palestinos indicam o crescente consenso de que um Estado soberano é um resultado necessário e justo.

Apesar do reconhecimento generalizado da necessidade de um Estado palestino, tem havido uma evidente falta de intervenção efetiva e de pressão sobre Israel para que interrompa a expansão dos assentamentos e se envolva em negociações genuínas. Os interesses geopolíticos das principais potências geralmente obstruem ações decisivas, deixando os palestinos em um estado perpétuo de limbo.

Uma pergunta que permanece sem resposta é: o que Israel realmente busca? Embora seja evidente que Israel deseja que os palestinos sejam mortos, presos ou exilados, esses resultados são inaceitáveis.

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Os palestinos não vão a lugar algum — já é hora de o mundo apoiar o estabelecimento de um Estado palestino independente. Sejamos claros: a atual campanha de matança e destruição em massa demonstrou que Israel rejeita o papel das Nações Unidas, da Autoridade Palestina, do Hamas, do Fatah ou de qualquer outra facção.

Enquanto os palestinos se recusam firmemente a sair, Israel parece ter a intenção de impor uma administração rudimentar e tribal sobre Gaza, lembrando visões ultrapassadas de governança sem direitos civis ou políticos. Somente os palestinos devem ter a autoridade para decidir seu próprio futuro.

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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