Jamil Chade

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Como uma mentira da extrema direita disseminou violência pelo Reino Unido

Um crime bárbaro, uma fake news e uma parcela da população radicalizada. Foi com esses ingredientes que, esta semana, o Reino Unido viu eclodir a violência a partir da disseminação de desinformação.

O caso começou quando, de maneira dramática, crianças foram assassinadas em Southport na segunda-feira (29). Foi o pior ataque contra menores no país na história recente. Três garotas morreram, oito outras foram esfaqueadas, e cinco estão em condições críticas. Dois adultos também estão em estado alarmante.

Em razão da idade do autor do crime (17 anos), a Justiça britânica e a imprensa local não divulgaram inicialmente o nome do suspeito. Mas isso abriu um vácuo para que teorias conspiratórias e a desinformação fossem usadas para insuflar um surto de ataques e a mobilização de massas.

Horas depois do ataque, um nome falso de um suspeito passou a circular por grupos de extrema direita, indicando que ele seria um refugiado muçulmano. Em pouco muitos, ele era mencionado 30 mil vezes por mais de 18 mil contas na plataforma X, de acordo com o Institute for Strategic Dialogue (ISD).

O nome inventado era Ali al-Shakati, supostamente um imigrante muçulmano que chegou ao Reino Unido em um pequeno barco em 2023. Nada disso era verdade.

O nome teve pelo menos 27 milhões de visualizações e interações nas redes sociais, desde então. A tese sem qualquer base ainda foi reforçada pelo influencer Andrew Tate, que nas redes de Elon Musk anunciou que o ataque contra as crianças veio de um "imigrante sem documentos que chegou num barco".

"A alma do homem ocidental está quebrado quando invasores assassinam suas filhas e você não faz nada", disse.

O algoritmo do X também passou a recomendar o nome do suposto autor dos crimes e ele passou a ser um "trending topics", além de estar listado nos itens: "O que está ocorrendo agora". O nome vinha acompanhado por detalhes sobre o personagem. Tanto o nome como a história contada sobre o suposto criminoso eram mentiras e fatos deliberadamente inventados.

O padrão era similar ao que pesquisadores já vinham identificando nos últimos anos em cada crime de grande repercussão: o uso por parte da extrema direita de momentos de comoção social para espalhar ódio contra minorias, muçulmanos e refugiados.

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Se o algoritmo fez sua parte, o fenômeno rapidamente foi abraçado por comunidades alimentadas por desinformação numa operação descrita pela polícia como "profissional".

Os primeiros grupos convocando as manifestações foram identificados no Telegram e, horas depois do crime e sem que a polícia jamais tivesse revelado o nome do autor das mortes, um desses grupos convocava seus membros a um ato diante de uma mesquita no dia seguinte.

Manifestante segura cartaz no qual se lê "Não seremos silenciados" em ato em Londres após o assassinatos de cranças em Southport no dia 29 de julho
Manifestante segura cartaz no qual se lê "Não seremos silenciados" em ato em Londres após o assassinatos de cranças em Southport no dia 29 de julho Imagem: Benjamin Cremel - 31.jul/AFP

Violência contra um criminoso inexistente

Com base em um nome falso, em detalhes fabricados e pedindo vingança, grupos passaram a aterrorizar o centro de alguns das principais cidades do país.

Na quarta-feira, pela segunda noite seguida, o vandalismo atingiu cidades como Londres, Manchester e Hartlepool. Manifestantes levavam placas dizendo "Queremos nosso país de volta" e mais de cem pessoas foram detidas.

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Em Manchester, os ataques ocorreram nas portas de uma das residências para estrangeiros que buscam asilo no Reino Unido. Em Southport, a extrema direita atacou mesquitas e carros de polícia. Em Hartlepool, os líderes religiosos fecharam a porta de uma mesquita, diante da chegada dos grupos de extrema direita, com cartazes: "Salvem as nossas crianças".

As autoridades policiais identificaram o grupo de extrema direita English Defence League como responsáveis pela violência em Southport. Enquanto isso, o líder da extrema direita, Nigel Farage, questionou a conclusão da polícia de que não se tratava de um ato de terrorismo islâmico.

Um manifestante acende sinalizador durante a manifestação 'Enough is Enough' no centro de Londres, realizada em reação à resposta do governo ao esfaqueamento de crianças em Southport
Um manifestante acende sinalizador durante a manifestação 'Enough is Enough' no centro de Londres, realizada em reação à resposta do governo ao esfaqueamento de crianças em Southport Imagem: Benjamin Cremel - 31.jul.24/AFP

Nome finalmente divulgado

Diante da violência, a Justiça britânica decidiu, na quinta-feira (1º), que seria adequado revelar o nome do suspeito, numa tentativa de frear a onda de desinformação contra refugiados e muçulmanos.

Trata-se de Axel Rudakubana, de 17 anos e nascido em Cardiff, no País de Gales. Seus pais chegaram há anos de Ruanda, fugindo do genocídio. Nenhum deles era muçulmano.

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Ainda assim, as autoridades alertam que outros 19 protestos estão sendo organizados pelo país nos próximos dias, enquanto mais de cem mesquitas passaram a pedir reforço de segurança. Os grupos nas redes sociais continuam ativos e pedem atos em Sunderland, Belfast, Cardiff, Liverpool e Manchester. Nas convocatórias, termos como "basta", "salve nossas crianças" e "parem os barcos".

Para John Woodcock, conselheiro do governo britânico sobre violência política, não existem dúvidas de que houve uma tentativa "combinada e coordenada" de espalhar a violência.

O primeiro-ministro Keir Starmer condenou as cenas, dizendo que os manifestantes "sequestraram" o luto da comunidade.

O superintendente da polícia, Neil Holyoak, disse que, embora "seja compreensível que o público tenha sentimentos fortes" sobre os esfaqueamentos em Southport, "a desordem violenta e ilegal que se seguiu foi completamente inaceitável e motivada por desinformação".

Em uma declaração, Downing Street disse: "Embora o direito ao protesto pacífico deva ser protegido a todo custo, ele deixará claro que os criminosos que exploram esse direito para semear o ódio e realizar atos violentos enfrentarão toda a força da lei".

Para Starmer, a culpa é do "ódio da extrema direita".

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Público observa homenagem com flores, balões e bichos de pelúcia, para as crianças assassinadas e feriadas em ataque em Londres
Público observa homenagem com flores, balões e bichos de pelúcia, para as crianças assassinadas e feriadas em ataque em Londres Imagem: Manon Cruz - 1º.ago.24/Reuters

Alerta às plataformas sociais

Na sexta-feira, o primeiro-ministro ainda mandou um alerta às plataformas sociais. "Permitam-me também dizer às grandes empresas de mídia social, e àqueles que as administram, que a desordem violenta é claramente provocada online: isso também é um crime", disse.

"Isso está acontecendo em suas instalações e a lei deve ser cumprida em todos os lugares", afirmou.

"É uma oportunidade incrível que todos nós desfrutamos... Há também uma responsabilidade que vem junto com ela. Esse é um espaço para uma conversa madura acontecer", completou.

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