Jamil Chade

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'Bispos do demônio': documento sigiloso da ONU revela repressão de Ortega

Um documento confidencial da ONU, enviado ao presidente Daniel Ortega, revela a opressão contra religiosos e bispos da Igreja Católica por parte do governo da Nicarágua.

O documento de agosto de 2023 é assinado por Nazila Ghanea, relatora especial da ONU sobre liberdade de religião, Irene Khan, relatora especial da ONU sobre a promoção e proteção do direito à liberdade de opinião e expressão, e Mary Lawlor, relatora especial da ONU sobre a situação dos defensores dos direitos humanos.

A denúncia circulou no momento em que o governo brasileiro iniciava uma tentativa de diálogo com o regime de Ortega. Nesta semana, depois de um congelamento da relação entre Brasil e Nicarágua, Ortega decidiu expulsar o embaixador do Itamaraty em Managua. Entre os motivos estava o papel de Lula em tentar interceder pelos bispos católicos, atendendo a um pedido do papa Francisco.

Agora, um documento revela que a preocupação da Santa Sé não era por acaso. Ortega jamais deu uma resposta aos relatores da ONU.

"Expressamos nossa profunda preocupação com as alegadas limitações ao exercício do direito à liberdade de religião ou crença e o suposto padrão sistemático de assédio aos defensores dos direitos humanos", disseram os relatores, em carta enviada ao regime.

Os ataques, segundo eles, incluíram a prisão e a alegada detenção arbitrária de membros da Igreja Católica na Nicarágua, além de deportações forçadas e proibições de entrada no país, e a criminalização de suas atividades pastorais e a proibição de realizar atos religiosos, o cerco policial a suas casas e locais de culto, o fechamento de veículos de mídia, o cancelamento do status legal de organizações sem fins lucrativos associadas à Igreja Católica, e o confisco de bens e propriedades.

"Também gostaríamos de expressar nossa preocupação com o fato de que essas supostas violações parecem, de fato, fazer parte de um padrão mais amplo de repressão aos diferentes componentes da Igreja Católica e de confisco de bens e propriedades", disseram. Isso seria repetido contra qualquer pessoa ou entidades consideradas críticas pelo governo.

Medidas repressivas

Segundo a carta, "um padrão de assédio sistemático das autoridades contra membros da Igreja Católica está piorando". O motivo eram as denúncias feitas pelos religiosos sobre as violações de direitos humanos no país.

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"Estima-se que, desde 2022, as autoridades nicaraguenses tenham cancelado o status legal de pelo menos 1.000 organizações sem fins lucrativos; dessas, 310 estariam associadas à Igreja Católica", afirma o documento.

"Em 2022, as autoridades nicaraguenses decretaram o fechamento de pelo menos 12 meios de comunicação associados à Igreja Católica, 7 dos quais eram administrados pela Diocese de Matagalpa", indicou.

Em 27 de maio de 2023, a Polícia Nacional emitiu um comunicado informando que estava investigando a Igreja Católica por lavagem de dinheiro, o que levou ao congelamento das contas bancárias de pelo menos três das nove dioceses católicas da Nicarágua.

A carta destaca ainda que, em 19 de abril de 2023, e em outras ocasiões, o presidente da Nicarágua acusou membros da Igreja Católica. "Muitos dos bispos participaram do incentivo aos terroristas. Bispos do demônio! Bispos de Satanás! Eles profanam o Santíssimo Sacramento quando o levantam em suas mãos manchadas de sangue", afirmou Ortega.

De acordo com os relatores da ONU, a expulsão de membros da Igreja Católica e de defensores de direitos humanos considerados críticos do governo, bem como a recusa em permitir que eles entrem na Nicarágua, tornou-se uma prática recorrente, com um total de 42 casos registrados desde agosto de 2022.

Nesta semana, porém, foram mais sete religiosos expulsos.

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A Polícia Nacional supostamente proibiu de diferentes maneiras a realização de cerimônias religiosas em espaços públicos e até mesmo a celebração de missas por meio de cercos policiais a igrejas, prisões arbitrárias ou a apreensão da vizinhança desses locais.

Um dos casos destacados foi a decisão da Polícia Nacional de proibir as procissões religiosas programadas para 13 e 14 de agosto de 2022 por motivos de "segurança interna". No âmbito das celebrações da Semana Santa em abril de 2023, todas as procissões religiosas nas ruas da Nicarágua foram proibidas e limitadas aos locais de culto. De acordo com a ONU, mais de 20 pessoas teriam sido presas em diferentes partes do país por não cumprirem a proibição policial de celebrações religiosas em espaços públicos.

As ações repressivas contra membros da Igreja Católica e defensores dos direitos humanos teriam se intensificado a partir de março de 2022 com a expulsão do Núncio Apostólico e a deterioração progressiva das relações diplomáticas entre a Igreja Católica e o governo da Nicarágua devido às preocupações expressas pelo Vaticano em relação à situação dos direitos humanos na Nicarágua.

Em 27 de abril de 2022, o Comitê de Justiça e Assuntos Jurídicos da Assembleia Nacional da Nicarágua apresentou um relatório ao Presidente da Assembleia, no qual solicitava a imposição de penalidades "mais severas" a, entre outros, "os religiosos que estavam envolvidos na aventura do golpe como líderes", referindo-se ao suposto apoio de membros da Igreja Católica às mobilizações sociais de 2018.

O caso do Monsenhor Rolando José Álvarez Lagos

De acordo com o texto, as ações repressivas e o assédio contra líderes religiosos teriam como alvo especial os sacerdotes que desempenharam um papel relevante durante o Diálogo Nacional de 2018, um processo para tentar esclarecer crimes cometidos pelo estado e promover um diálogo.

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Esse seria o caso do bispo de Matagalpa, Monsenhor Rolando José Álvarez Lagos, que teria se destacado na esfera pública por denunciar violações de direitos humanos perpetradas pelo governo, exigir a libertação de presos políticos e pedir paz e reconciliação entre os nicaraguenses.

Foi seu caso que levou o papa Francisco a pedir uma intervenção de Lula.

Na manhã de 4 de agosto de 2022, a Polícia Nacional teria enviado várias dezenas de policiais armados para a frente da diocese de Matagalpa. A polícia teria cortado o trânsito na rua onde a diocese está localizada, impedindo o acesso de pessoas e veículos à Catedral de San Pedro, onde o bispo iria oficiar uma missa.

Depois de impedir que o Monsenhor Rolando Álvarez celebrasse a missa, à tarde, a polícia de choque se posicionou do lado de fora da casa de Álvarez no bispado de Matagalpa, impedindo que ele e outras 11 pessoas deixassem o local ou recebessem comida, água ou remédios.

Em 5 de agosto, a Polícia Nacional anunciou que havia iniciado investigações criminais contra o Monsenhor Rolando Álvarez e as pessoas detidas na casa curial por tentar organizar grupos violentos e incitá-los a realizar atos de ódio contra a população.

Segundo a denúncia da ONU, a polícia informou que as pessoas sob investigação "permaneceriam em suas casas". Na realidade, todas elas tenham sido detidas à força contra sua vontade na casa curial pela Polícia Nacional, sem uma decisão judicial que a respaldasse.

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Nos dias 7 e 17 de agosto de 2022, a polícia permitiu que três pessoas deixassem a reitoria. Uma dessas pessoas foi deportada pelo governo. O restante foi forçado a permanecer nas instalações da igreja, com pouca comida, até 19 de agosto, ou seja, por um total de 15 dias.

Durante todo esse tempo, a reitoria foi vigiada por dezenas de policiais, policiais de choque e drones. Os detidos não foram informados das razões pelas quais ninguém podia entrar ou sair do prédio, nem lhes foi mostrado um mandado de prisão. Na madrugada de 19 de agosto de 2022, a polícia invadiu a reitoria e prendeu os ocupantes. Na batida, a polícia não apresentou nenhum mandado de busca ou de prisão, nem informou às vítimas seus direitos ou os motivos de sua prisão.

As nove pessoas foram transferidas para Manágua. O Monsenhor Álvarez foi levado para uma casa na capital nicaraguense e privado de sua liberdade. Essa medida não foi ordenada por um juiz, mas imposta por uma decisão policial.

As outras pessoas foram transferidas para a Dirección de Auxilio Judicial Evaristo Vásquez, conhecida como "El Chipote". Em 9 de fevereiro de 2023, esses indivíduos foram enviados aos Estados Unidos.

Só quatro meses depois de chegar a Manágua, o bispo foi levado perante um juiz, que o acusou de "crimes de conspiração para cometer atentado contra a integridade nacional e propagação de notícias falsas por meio de tecnologias de informação e comunicação em detrimento do Estado e da sociedade nicaraguenses".

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