Ocultação de cadáver em ditadura não é protegida por Anistia, decide Dino
O ministro do STF Flávio Dino defende que a Lei da Anistia não pode blindar crimes como a ocultação de cadáveres por parte de integrantes do regime militar (1964-1985). Numa decisão tomada neste domingo (15), o juiz abre caminho para que a tese seja avaliada pelo STF. Se vingar, ela teria impacto sobre todos os casos dessa natureza.
Em 2015, o Ministério Público Federal apresentou uma denúncia contra Lício Augusto Ribeiro Maciel e Sebastião Curió Rodrigues de Moura, ambos tenente-coronel do Exército Brasileiro, buscando a condenação pelos crimes de homicídio qualificado e ocultação de cadáver cometidos durante a Guerrilha do Araguaia.
A denúncia inicial não foi recebida, sob a justificativa da validade da Lei de Anistia, que concede anistia a crimes políticos e conexos ocorridos entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979.
Em 2024, um recurso apresentado pelo MPF foi admitido pelo Supremo Tribunal Federal. Como Curió faleceu em 2022, o caso foi mantido em relação ao pedido de condenação de Lício Maciel.
A relatoria coube ao ministro Flávio Dino que, neste domingo, decidiu examinar se a Lei de Anistia tem validade para crimes que ainda estão em vigor, como a ocultação de cadáveres.
Na decisão, o juiz do STF aponta para a "possibilidade, ou não, de reconhecimento de anistia a crime de ocultação de cadáver (crime permanente), cujo início da execução ocorreu antes da vigência da Lei da Anistia, mas continuou de modo ininterrupto a ser executado após a sua vigência, à luz da Emenda Constitucional 26/85 e da Lei no. 6.683/79".
"O Ministro Flávio Dino decide, inicialmente, pela existência de Repercussão Geral da matéria", destaca o documento.
"A decisão busca formar jurisprudência na Corte se a Lei de Anistia se aplica a crimes cujo início da execução se deu no período de 1961 a 1979, mas que continua a se consumar até o presente, como é o caso da ocultação de cadáver (art. 211 do Código Penal)", explica.
O tema agora será levado ao Plenário do STF.
Na decisão, Dino deixa claro que o debate se limita a definir o alcance da Lei de Anistia em relação ao crime permanente de ocultação de cadáver. Segundo ele, não se trata de uma revisão da Lei de Anistia.
"No crime permanente, a ação se protrai no tempo. A aplicação da Lei de Anistia extingue a punibilidade de todos os atos praticados até a sua entrada em vigor. Ocorre que, como a ação se prolonga no tempo, existem atos posteriores à Lei da Anistia", explica.
"Tal artigo somente pode existir em face da lógica de que existe o crime enquanto não cessar a permanência, o que reforça a certeza de que a Lei da Anistia não atingiu, nem poderia atingir, os fatos posteriores à sua vigência", diz.
"O crime de ocultação de cadáver não ocorre apenas quando a conduta é realizada no mundo físico. A manutenção da omissão do local onde se encontra o cadáver, além de impedir os familiares de exercerem seu direito ao luto, configura a prática do crime, bem como situação de flagrante", completa.
Na decisão, ele aponta como "todos os cidadãos tem um direito natural e inalienável de velar e enterrar dignamente seus mortos". "O crime de ocultação de cadáver tem, portanto, uma altíssima lesividade, justamente por privar as famílias desse ato tão essencial", escreveu.
"Ainda Estou aqui"
Em sua decisão, o ministro ainda cita o filme "Ainda Estou Aqui" - derivado do livro de Marcelo Rubens Paiva e estrelado por Fernanda Torres (Eunice). Segundo ele, a obra tem "comovido milhões de brasileiros e estrangeiros".
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receber"A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho", disse.
Dino ainda cita a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, promulgada pelo Decreto no. 8.767, em 11 de maio de 2016:
"Os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com seus procedimentos constitucionais, as medidas legislativas que forem necessárias para tipificar como delito o desaparecimento forçado de pessoas e a impor-lhe a pena apropriada que leve em conta sua extrema gravidade. Esse delito será considerado continuado ou permanente, enquanto não se estabelecer o destino ou paradeiro da vítima".
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