Embaixador conta retirada da Síria e dano ao consulado: 'Explosão intensa'
A transição política na Síria é ainda marcada pela incerteza e existe uma preocupação sobre como as novas lideranças vão tratar dos direitos de minorias, dos cristãos e das mulheres. A análise é do embaixador do Brasil na Síria, André Santos, que ainda conta em entrevista ao UOL como foi sua retirada de Damasco e os danos causados pela explosão na área consular das instalações brasileiras.
O diplomata deixou a Síria no fim de semana e está em Beirute, até que haja uma situação mais estável para que seu retorno seja possível. Segundo o embaixador, todos estão ainda tentando entender o que ocorreu nos últimos dez dias, aponta para o impacto regional da transformação política do país e ainda alerta para os riscos dos ataques israelenses.
Eis os principais trechos da entrevista:
Jamil Chade: Em que estado está hoje a transição política na Síria?
Embaixador André Santos: Qualquer prognóstico do que vai acontecer na Síria é extremamente prejudicado pelo fato de que nós ainda não entendemos o que ocorreu nos últimos dez dias. Estamos tentando montar esse quebra-cabeça. Temos pinceladas do que ocorreu: o avanço das tropas lideradas pelo HTS. Eles têm uma base sunita radical. Abu Mohammed al-Jolani, que é seu líder e que comanda as conversas sobre a transição, foi parte de grupos armados ligados à Al Qaeda. Há uma grande dúvida sobre como isso vai ocorrer.
Existem elementos que nos animam. O discurso é de respeito às minorias, às diferenças religiosas. Mas, ao mesmo tempo que vemos palavras positivas, testemunhamos atos bastante negativas e que contradizem o discurso. Vingança contra pessoas relacionadas ao governo anterior e relatos de mulheres que são interpeladas pela rua por não usar o hijab. Há relatos de homens jovens que são sequestrados e levados para se juntarem aos grupos que tem poder em Damasco.
A população está em dúvida. Alguns são mais otimistas, outros menos. Mas todos, inclusive nós mesmos, temos dúvidas sobre como isso vai evoluir.
A decisão de sair de Damasco ocorreu por conta de alguma ameaça específica ou precaução?
Não houve uma ameaça específica. O que ocorreu é que a situação de segurança já vinha se deteriorando a ponto de levar várias embaixadas a considerar a saída de Damasco. Na semana passada, eu solicitei e obtive a autorização para que meus funcionários brasileiros pudessem deixar o país e ir para Beirute. Eu não estava incluído nesse pedido.
Mas, ao longo da semana, a aviação israelense, que já estava bombardeando várias partes do país e Damasco, iniciou um bombardeio mais frequente e mais intenso. No sábado, esse bombardeio ocorreu nas proximidades do bairro da embaixada. O ataque era contra um aeródromo, que fica três quilômetros da embaixada.
Mas o que chocou é que os explosivos que foram lançados foram tão fortes que superou em muito os bombardeios que ocorreram até mais perto da embaixada. Eu estava no meu escritório. Com a onda de choque, literalmente vi a janela entrar. Ela quase implodiu. O barulho foi ainda mais violento.
Essas explosões bem mais fortes me levaram a pedir para Brasília a minha inclusão na lista de pessoas a deixarem Damasco. O próprio ministro Mauro Vieira me ligou e perguntou o que poderia fazer para garantir nossa segurança.
Houve dano?
Houve danos materiais de pequena monta na área consular.
E qual foi o procedimento para a saída?
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JAMIL CHADE
Todo sábado, Jamil escreve sobre temas sociais para uma personalidade com base em sua carreira de correspondente.
Quero receberMinha sugestão foi entrar em contato com a ONU, que há anos mantém contato com o HTS. O chanceler imediatamente entrou em contato com nosso embaixador nas Nações Unidas, Sergio Danese, que, por sua vez, entrou em contato com o departamento da ONU.
Com isso, tivemos a oportunidade de contar com um acompanhamento de um veículo de segurança da ONU. Eles fizeram um percurso de Damasco até a fronteira, pela manhã, para fazer uma avaliação do que havia. Depois, se apresentou para que nosso comboio pudesse fazer a viagem até a fronteira com o Líbano.
No comboio estavam cidadãos argentinos, cubanos, venezuelanos, búlgaros, espanhóis, chilenos e inclusive russos que não eram ligados à embaixada de Moscou.
Qual a avaliação do número de brasileiros na Síria?
Estimamos 3,5 mil brasileiros. Nossa diáspora é formada por binacionais.
Existe plano de evacuação para eles?
Não houve até o momento uma demonstração clara de que vários integrantes queiram deixar a Síria. Há sim pedidos pontuais. Por enquanto, o maior pedido é uma ajuda de trânsito interno, de um cidadão que queira sair de Aleppo para Damasco.
O Itamaraty soltou uma nota dura sobre os ataques de Israel na Síria? Isso preocupa?
Preocupa e a nota diz exatamente isso. Numa situação com a atual da Síria, toda intervenção externa leva a uma instabilidade ainda maior. Por isso, é preocupante a ação israelense, que, a meu ver, muito dificilmente poderia ser justificada como um ato defensivo.
Como o senhor avalia a situação dos cristãos na Síria?
É um tema de preocupação. Os cristãos representam uma minoria e todas as minorias são objeto de preocupação aqui. Não apenas as religiosas, mas também étnicas. Existe a preocupação de que os grupos tentem impor o que ocorria nos territórios que eles já controlavam. Locais onde as mulheres tinham de sair na rua totalmente tapada, onde existe uma separação das crianças nas escolas.
As escolas vão retomar as aulas neste próximo domingo e estamos acompanhando de muito perto. Isso sinalizará um potencial de radicalização ou não dos grupos no poder.
Os acontecimentos na Síria têm o potencial de transformar a geopolítica da região?
É cedo para que previsões sejam feitas. Mas o impacto do que está ocorrendo na Síria será percebido em toda a região. Quando vemos os antecedentes, a questão de Israel com Irã, com o Hezbollah, a questão curda, tudo isso terá um impacto muito grande na região. E todos estamos tentando entender quais são as chaves que vão deslanchar movimentos não antecipados de invasões, de controle territorial.
O sr. pretende voltar para Damasco?
Lógico. Mas nos meus ombros está a responsabilidade sobre meus funcionários. Não quero tomar uma atitude precipitada. Quero aguardar uma avaliação de segurança da ONU para tomar uma decisão de um retorno. Nossa preocupação é sempre com os brasileiros na Síria.
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