Jamil Chade

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Opinião

Anistia seria mais um golpe contra a democracia

Loretta escutou as palmas, vestiu o roupão e foi para o terraço. O que começou discreta e espontaneamente, a cantoria nas varandas e janelas, depois de filmado e compartilhado pelas redes sociais, espalhou-se, e as serenatas se tornaram ponto de encontro da população confinada.

Agora tinham hora marcada — a mesma, para a cidade inteira —, e o repertório era compartilhado previamente pela internet, músicas da tradição, cantigas populares, pops históricos. Todo fim de tarde Roma cantava a mesma canção. Alguns a reproduziam também em aparelhos de som e instrumentos musicais. Loretta gostava desse momento. De repente, tinha profundo respeito por cada ser humano que via na varanda. Se as pessoas e suas circunstâncias não são amáveis, podemos ao menos amar a ideia de humanidade. Querer pertencer.

No final de março de 2020, era assim que a pandemia era vivida na cidade de Roma, um dos epicentros da pior crise sanitária em cem anos.

O relato acima da faz do romance Nada la fora e a aqui dentro, da escritora e jornalista Juliana Monteiro. Publicado no ano passado pela editora Patuá, o livro conta a história de uma mulher que, diante da crise existencial que atravessava o mundo, se questionava e buscava sentido para sua vida.

Juliana Monteiro costuma dizer que a ficção não mente. Apenas conta a história de uma outra forma. Em sua obra, aquela cena ocorria no dia 24 de março de 2020.

Enquanto isso, no Brasil, vivíamos uma outra cena que preferíamos nunca ter sido uma realidade. A de um presidente, incapaz de lidar com a crise, que declarava naquela mesma data que quem contraísse o vírus desenvolveria apenas uma "gripezinha".

O negacionismo matou. Matou milhares de pessoas.

Hoje, cinco anos depois, vemos esse mesmo presidente sendo declarado como réu por uma tentativa de golpe de estado. Seu desprezo pela democracia, porém, não se resumiu a um só ato de ruptura com as instituições.

No Brasil, ela também morreu com cada uma das 700 mil vítimas da covid-19.

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Hoje, como se esse número tivesse desaparecido do imaginário coletivo, vemos esse mesmo ex-presidente dizendo que uma prisão seria o "fim" de sua vida.

Clama por anistia, nega a existência de um plano que tinha data, documentos, mensagens e até uma minuta da declaração do que seria o colapso da democracia.

Jair Bolsonaro implora para que nos esquecemos do óbvio.

Seu destino ainda é incerto. Em todos os sentidos (não é mesmo senhores embaixadores da Hungria, Argentina, EUA e tantos outros 'aliados'?).

O Brasil pode até ter um ex-presidente em fuga. Mas anistias não cabem mais num país que, com todas suas dificuldades, tenta costurar a inauguração de uma nova democracia a partir das dores daqueles que jamais foram cidadãos. Daqueles que, explorados, deram sentido - e muito dinheiro - para uma elite que jamais teve um projeto de país. Daqueles que conheceram a democracia apenas no dia do voto.

Na democracia que queremos, não há espaço para anistias. Sabemos que enterrar o passado, esperando que ele desapareça, não nos serve para construir um futuro. Precisamos de Justiça, Memória e Verdade.

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Por isso, em homenagem a cada uma daqueles nossos tios, avós, amigas, pais, vizinhos, filhas e todos os demais brasileiros que padeceram, nós - os sobreviventes - temos a responsabilidade de dizer: "sem anistia".

Em seu livro, Juliana Monteiro nos relembra com uma precisão a crueldade daquele momento. Diz ela sobre o dia 16 de abril de 2020:

Nesse dia, o governo brasileiro trocou pela primeira vez o ministro da Saúde. Era preciso encontrar um homem que se prestasse a desconsiderar o consenso científico e os protocolos da comunidade internacional e assumir a tragédia em um país com mais de 200 milhões de habitantes.

Era preciso encontrar um verdadeiro canalha. Foi escolhido um médico de quem nunca se soube muito, mas que não suportaria o cargo. O país permanecia sem comando, com governadores e prefeitos deliberando solitariamente sobre as medidas sanitárias de seus estados enquanto o governo federal e o presidente não poupavam esforços para desacreditar as medidas de contenção e os avisos da ciência.

No Brasil, a quarentena era opcional, "free style", como definia Rafaela, cada brasileiro decidia como se proteger segundo o alcance dos seus privilégios e, inacreditavelmente, a ideologia política. Os apoiadores do governo não acreditavam no vírus, zombavam da doença nas redes sociais e produziam aglomerações. Teve alegoria de caixão, para zombar dos quase 2 mil mortos, desfilando na principal avenida da maior cidade do país. O presidente, sobretudo, o presidente.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

8 comentários

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José Alaércio Nano Damasco

Aceitar anistia é, no atual contexto,  despojar-se da honra.

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Jaredes Antunes Lemos

se o Congresso(Câmara) aprovar a anistia, essa instituição IMORAL deve ser fechada, pois só atende aos próprios interesses, traindo a confiança e os votos dados pelo Povo.

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FL Vio Silva

E o mensalão é o que? Uma ode à Democracia? Se comprar voto do eleitor é crime, imagina comprar votos de parlamentares!!! Isso sim é contra a democracia! Houve quem quisesse o golpe, mas esse não se realizou, e houve desistência voluntária de quem pensou. Uns sem noção em quebra-quebra, sem armas, com prédios vazios, num domingo, sem apoio do exército e com o suposto golpista de férias nos EUA.  Só sem noção pra entender de forma diversas.

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