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José Luiz Portella

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Schwartsman sobre a Perseu Abramo: Não aprenderam nada, não esqueceram nada

6.ago.2015 - Alexandre Schwartsman, economista e ex-diretor do Banco Central - Ze Carlos Barretta/Folhapress
6.ago.2015 - Alexandre Schwartsman, economista e ex-diretor do Banco Central Imagem: Ze Carlos Barretta/Folhapress

Colunista do UOL

24/04/2022 07h00

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A política econômica do PT representa volta ao passado desastroso de Dilma. Assim Alexandre Schwartsman, conhecido economista, ex-diretor do Banco Central, abriria e resumiria a entrevista.

A entrevista com ele é longa e contempla vários temas, portanto, a introdução é curta. Os leitores terão mais tempo para as respostas.

Alexandre vai para o enfrentamento com vigor e decisão. São 16 perguntas respondidas, e creio, total disposição para o debate. Antípoda é o PT.

Ele se contrapôs sem paliativos ou subterfúgios aos conceitos da Fundação Perseu Abramo, encarregada de elaborar o programa de governo de Lula.

A entrevista está na íntegra, conforme foi enviada.

  1. Faria alguma modificação no arcabouço do ministério? Ou de seus órgãos correlatos?

Não me parece necessário. O problema não está na organização do MF.

2- Houve segunda pergunta, que, em função do tempo, será respondida em outra etapa. Era extensa.

  1. Qual seria a melhor âncora fiscal?

A definição de uma meta de superávit primário que implique redução da relação dívida-PIB para um patamar considerado satisfatório (satisfatório no caso significa uma dívida que permita o uso da política fiscal para fins de estabilização da atividade sem receio de trajetórias de endividamento crescente) num determinado horizonte, casado a um limite de carga tributária.

  1. O que faria com os cerca de 370 bilhões de renúncia fiscal existentes em nosso OGU com subsídios, estímulos e isenções?

Os estudos a respeito já mostraram que boa, senão a maior, parte destas renúncias não atende critérios básicos de custo e benefício: abre-se mão de muitos recursos sem que a sociedade como um todo se beneficie no processo.

A Zona Franca de Manaus implica renúncia fiscal na casa de R$ 45 bilhões (cerca de 0,5% do PIB), por exemplo. Foi criada na prática em 1967, prevista para durar até 1997, mas entre várias prorrogações deve continuar até 2073, um reconhecimento que mais de 50 anos de incentivos não bastaram para criar uma indústria que pudesse se manter na sua ausência, ou seja, um completo fracasso.

Beneficia as indústrias que lá se estabeleceram, mas é difícil argumentar que não existem alternativas melhores para uso dos recursos públicos. Basta lembrar que o Bolsa Família no ano passado custou ao redor de R$ 35 bilhões.

Já o Simples Nacional representa pouco mais de R$ 80 bilhões, com limite de faturamento de R$ 4,8 milhões/ano. Especialistas apontam que este limite é muito elevado e acaba beneficiando empresas que poderiam ser tributadas de maneira similar às maiores. No caso, caberia recalibrar o teto de aplicação do Simples para baixo.

Da mesma forma, acredito que poderíamos acabar com tratamento privilegiado para poupança e títulos imobiliários, bem como agronegócio, que mais beneficiam os aplicadores nestes papéis, cujo montante estimado de renúncia supera R$ 10 bilhões. Na mesma linha, acabar com as deduções de rendimentos tributáveis, extraordinariamente regressivas e representam praticamente R$ 25 bilhões.

Apenas com estes falamos em algo ao redor de R$ 120 bilhões em 2022, cerca de 1/3 da renúncia. E é possível avançar mais. Acredito que a meta seria reduzir a renúncia à metade do que existe hoje (e não metade do que sobra tirando Simples, ZFM e outros, como na PEC "Emergencial").

  1. Você taxaria dividendos e/ou aumentaria taxação sobre Juros sobre Capital Próprio?

Não mexeria no JCP. Ao permitir a dedução de juros sobre capital próprio para fins de apuração de lucro líquido e, portanto, IR e CSLL, reduzimos o incentivo ao financiamento por dívida, cujos juros são abatidos do lucro líquido. Assim damos incentivo a uma estrutura de capital menos torcida na direção de dívida, o que me parece financeiramente mais estável para as empresas.

Quanto aos dividendos, a questão não é sua tributação propriamente dita. O Brasil já tributa bastante o lucro das empresas (em torno de 34%), a quarta maior alíquota de uma amostra de 108 países, cuja média é pouco inferior a 21%. No caso de países da OCDE - cuja alíquota média e mediana se situa ao redor de 23,5% - nenhum tributa mais que o Brasil.

Dito de outra forma, o Brasil tributa o lucro antes de sua distribuição. Outros países optam por tributar depois da distribuição, o que revela um cenário bem mais equilibrado do que a narrativa usual.

Isto dito, há um problema bem mais sério com a isenção de dividendos, qual seja o tratamento desigual entre quem fornece serviços como pessoa física e aqueles que se estabelecem como pessoas jurídicas (a tal "pejotização", se bem que há mais nisto do que só o IR, e a CSLL). Fato é que duas pessoas provendo igual serviço (um assalariado e outro conta própria) podem ser tratadas de maneira muito distinta do ponto de vista tributário; em particular, a PJ é menos tributada do que a PF. Não é apenas desigual, mas acaba representando também uma espécie de "renúncia fiscal" que costuma beneficiar exatamente aqueles nas camadas mais altas de renda.

Não sei se isto se resolveria apenas com a tributação de dividendos, mas talvez seja este o caminho.

  1. Em artigo recente, salvo engano, você explicitou que o aumento dos preços das commodities não pode ser classificado como choque de oferta, tratar-se-ia de choque de demanda, pois para países exportadores como o Brasil, a sociedade, no todo, se tornou mais rica. A sétima edição do boletim Desigualdade nas Metrópoles apontou que a renda média caiu e alcançou a mínima histórica nas regiões metropolitanas. Você acredita na necessidade de políticas públicas para elevar a renda do cidadão situado nos estratos inferiores de rendimento, a curto prazo, ou é necessário conter a demanda pelo enriquecimento da sociedade descrito no texto?

A questão em particular é que o choque a que a economia foi submetida não pode ser tratado como uma redução da disponibilidade de bens para a economia como um todo, o que seria o caso de um dito "choque de oferta".

No caso do choque de oferta, não cabe ao BC ajustar a política monetária para neutralizar seu impacto direto sobre os preços. A teoria e prática de política monetária recomendam neste caso calibrar a taxa de juros para minimizar o efeito indireto do choque de oferta sobre os demais preços, isto é, o repasse.

Assim, uma elevação no preço do trigo e derivados, que caracteriza uma redução da oferta para o Brasil, importador líquido deste produto, não deve suscitar reação da política monetária. Todavia, se outros preços ameaçarem subir, por conta dos efeitos indiretos do trigo, em particular salários, a taxa de juros tem que reagir, levando em conta, é claro, que o choque de oferta já empobreceu a sociedade.

No caso de um aumento dos preços internacionais de um produto que exportamos liquidamente, por exemplo, soja, ou carne, ou petróleo, a reação é algo distinta. Obviamente não queremos conter o aumento do preço internacional de petróleo elevando a taxa de juros no Brasil, mas temos que conter os efeitos secundários, agora considerando que a renda do país como um todo (não de cada cidadão em particular, é claro) aumenta em resposta aos preços mais altos. São, portanto, reações distintas da autoridade monetária.

O objetivo, no caso, é conter a inflação, não fazer política social por meio da política monetária, coisa que já tentamos no passado e fracassamos.

Isto dito, os efeitos distributivos dos choques são relevantes. Uma coisa é falar, como falei, da sociedade como um todo; outra, bem mais complicada, é entender como cada grupo é afetado. Se conseguirmos fazer isto, em tese poderíamos desenhar políticas compensatórias.

Na prática, porém, o desafio é ainda maior, não apenas para identificar quem ganhou e quem perdeu, mas também para desenhar e implementar políticas compensatórias a princípio fiscalmente neutras, isto é, ganhadores pagando mais e perdedores recebendo mais, presumivelmente por meio de tributação e transferências.

A solução viável, como vejo, passa pelo desenho de políticas permanentes de combate à pobreza, não como reação a choques específicos, cuja duração não temos como estimar a priori.

  1. O que está errado, na sua opinião, com relação às propostas veiculadas pelo Fundação Perseu Abramo para a economia?

Em essência, na insistência quanto a adotar as mesmas medidas que foram tomadas no período da chamada Nova Matriz Econômica, NME, seja no que diz respeito à política macroeconômica, seja quanto à política microeconômica, em particular, no caso desta última, o papel do governo em termos de intervenção econômica.

Não resta dúvida quanto à significativa deterioração fiscal que foi patrocinada pela NME principalmente ao longo do primeiro mandato da presidente Dilma, embora tenha começado já no fim do segundo mandato do presidente Lula sob pretexto de política fiscal anticíclica, muito embora a economia estivesse em curso de recuperação da crise internacional de 2008 desde o segundo trimestre de 2019.

O superávit primário, que havia se mantido ao redor de 3,3% do PIB na década de 1999 a 2008, caiu para 1,8% do PIB no período 2009-2014. Minha estimativa de superávit primário recorrente, isto é, sem "pedaladas", contabilidade criativa e receitas/gastos pontuais (capitalização da Petrobras, por exemplo), aponta para algo como metade disto, 0,9% do PIB. Assim, enquanto entre 2007 e 2013 a política fiscal contribuía para reduzir a relação dívida bruta -PIB ao ritmo de 2,6% do PIB a cada ano, no triênio 2014-2016 o déficit primário elevou a dívida 1,6% do PIB por ano.

Isto se deve não apenas ao relaxamento da política fiscal no plano federal, mas à desconstrução dos mecanismos que impunham disciplina aos estados (principalmente) e municípios desde os acordos de renegociação das dívidas destes entes na segunda metade dos anos 90.

Adicionalmente criou-se um gigantesco orçamento paralelo por meio do BNDES, financiado por emissão de dívida pública que não aparecia na contabilidade da dívida líquida, mas que, entre 2017 e 2013 adicionou nada menos do que 9,3% do PIB à dívida bruta.

A autonomia operacional do BC foi reduzida. Como consequência, o BC, ao invés de utilizar a política monetária para conter a inflação, passou a intervir no mercado cambial através da venda de derivativos. Entre meados de 2013 e o final de 2014, a posição do BC em termos de venda de swaps cambiais saiu de zero para a vizinhança de US$ 110 bilhões.

Apesar disto, a inflação seguiu acelerando, levando ao retorno de medidas de controle de preços de combustíveis e energia, principalmente. A inflação cheia namorou o teto da meta no primeiro governo Dilma (média 6,2% quando o limite superior da meta era 6,5%), mas apenas por força da contenção artificial de preços administrados, principalmente em 2012 (3,7%) e 2013 (1,5%).

A consequência disto foi a transformação do lucro da Petrobras (R$ 68 bilhões em 2010 a preços do final do ano passado) em enorme prejuízo, R$ 40 bilhões, em 2014. Também o setor elétrico foi desorganizado como resultado da intervenção nos preços.

À parte o desastre no campo de controle de preços, a NME também incentivou o aprofundamento de políticas industrias conduzidas primordialmente pelo BNDES (graças à maciça capitalização acima mencionada), por meio de créditos subsidiados. Adotamos uma política de "campeões nacionais", cujos destaques foram o grupo X, de Eike Batista (que não por acaso considerava o BNDES o melhor banco do mundo, como afirmou em julho de 2010), a indústria naval (a Sete Brasil) e a Odebrecht.

Assim, não apenas o país investiu pouco, mas investiu mal. Ao invés de ser guiado pela percepção de oportunidades de mercado, foi determinado pela "mão visível" do governo federal, sujeito a lobbies de todo tipo, para não entrar em considerações na esfera criminal, depois desvendadas pela Lava Jato.

O retorno deste arranjo de política econômica, caracterizado por relaxamento fiscal, redução da autonomia do BC, intervenção no mercado de câmbio, intervenção no sistema de preços (basta ver as propostas para preços de combustíveis e "estoques reguladores"), definição de campeões nacionais, é o que se depreende da Fundação Perseu Abramo.

Não aprenderam nada; não esqueceram nada.

  1. Qual a articulação saudável entre Estado e mercado?

Ver questão 10.

  1. O Brasil está preso na armadilha da renda média? Se tiver, qual a melhor forma de sair dela?

Até onde entendo, o Brasil conseguiu crescer rapidamente no contexto de urbanização da economia, ou seja, movendo sua força de trabalho de setores menos produtivos (agricultura) para mais produtivos (indústria e serviços), implicando aumento da chamada Produtividade Total do Fatores (FTP).

Com o fim do processo de urbanização, o crescimento da PTF caiu de pouco menos de 2% aa entre 1948-80 para 0,1% ao ano entre 1981-2010.

Parece claro, portanto, que precisamos, em primeiro lugar, acelerar o ritmo de expansão da PTF. Não há, porém, consenso sobre como fazê-lo.

Os desenvolvimentistas argumentam que políticas de incentivo à indústria seriam o caminho. Todavia, quando se simula o que seria a PTF brasileira em comparação à norte-americana, o paradigma mundial, a conclusão a que se chega é que, se nossa estrutura econômica fosse a mesma dos EUA, o hiato de PTF seria reduzido em menos de 1/3. Dito de outra forma, mesmo que replicássemos aqui a estrutura econômica americana, no que diz respeito ao peso da indústria, permaneceríamos muito menos produtivos que os vizinhos do norte.

A maior diferença se deve à menor produtividade brasileira em cada um dos setores individuais da economia. Portanto, se queremos endereçar a questão da PTF não basta estimular a indústria. Temos também que estimular a concorrência, o que envolve, entre outras coisas, partir para mais abertura comercial, desregulamentação de setores, fim de incentivos a setores hoje protegidos e, principalmente reforma tributária.

É praticamente consensual que a tributação indireta sobre consumo no país é extraordinariamente ineficiente. Falamos de ICMS, PIS-Cofins e, em menor grau, IPI. São tributos complexos, sujeitos a uma miríade de regimes especiais e foram sobreutilizados, em particular o ICMS, como instrumento de atração de empresas para determinados estados.

O peso sobre a produtividade pode ser aferido pelo indicador do Banco Mundial quanto ao tempo dedicado à atividade de pagamento de impostos. O Brasil segue como líder inconteste, 1.500 homens-hora/ano contra média na casa de 160 homens-hora/ano na OCDE e 317 hh/ano na América Latina (incluindo o Brasil). Ou seja, há usos mais produtivos para este recurso, que por si só já provocariam impacto na PTF.

Afora isto, a remoção de distorções tributárias, que por vezes implicam manufatura em locais distantes tanto da matéria-prima como do mercado consumidor apenas por força de vantagens relativas ao pagamento de impostos, também teria efeitos positivos sobre a produtividade.

Na mesma linha, o setor industrial é sobretaxado, enquanto o setor de serviços é subtaxado. A divisão mais equitativa da carga tributária reduz também distorções, com impacto no sentido de elevar a PTF.

À parte a questão da produtividade, há o baixo nível do investimento. O Brasil é dos poucos países em que o investimento é inferior ao consumo do governo no PIB (18,0% contra 19,3% do PIB entre 2000 e 2021). Há um efeito de crowding-out (expulsão), que opera pelo impacto do gasto público sobre as taxas reais de juros. A redução do consumo do governo, pela diminuição de taxas de juros, colaboraria no sentido de aumentar o investimento e, portanto, o crescimento.

Por fim, resta a questão educacional. Como recentemente chamou a atenção Samuel Pessoa, 80% da diferença de produtividade entre a Coreia e o Brasil se deve à educação, muito mais do que à composição setorial do produto, ou mesmo o investimento.

  1. Quais as principais falhas de Estado e falhas de mercado e como superá-las?

A principal falha do Estado é estar sujeito à captura pelos interesses privados. Já dizia Adam Smith, em 1776, "o interesse dos empresários é sempre ampliar o mercado e limitar a concorrência. (...) A proposta de qualquer lei ou regulamento comercial que provenha de sua categoria deve sempre ser examinada com grande precaução e cautela, não devendo nunca ser adotada antes de ser longa e cuidadosamente estudada, não somente com a atenção mais escrupulosa, mas também com a maior desconfiança".

O remédio para isto é justamente reduzir o poder de intervenção estatal discricionária. Como prefiro dizer, com menos elegância, "quanto menos carniça, menos urubus". Circunscrevendo a intervenção estatal com regras claras e gerais (horizontais) é um passo gigantesco no sentido de evitar falhas de governo.

Já a literatura de falhas de mercado é gigantesca (externalidades, monopólios naturais, ganhos de escala) e não tenho necessidade de me alongar a respeito aqui. Isto dito, cabe a mesma recomendação de Adam Smith quanto a medidas de correção de falhas de mercado. Eu prefiro partir da presunção de inocência (no caso, eficiência). O fluxograma abaixo, roubado da internet, resume bem o que penso a respeito (no caso fala de proteção a um setor, mas vale para qualquer intervenção).

  1. Qual a diferença de pensamento sobre inflação, que você tem com relação aos economistas denominados heterodoxos?

Eu vejo a inflação como resultado de inconsistências de políticas monetária e fiscal.

Cabe ao BC calibrar a taxa de juros para, por meio dos canais de transmissão de política monetária (escolha consumo-poupança, crédito, investimento, etc.), manter a inflação dentro da meta. A autonomia do BC existe exatamente para que a autoridade monetária possa atuar desta forma, sem se preocupar com fins políticos, como garantir reeleição de mandatários. Não por outro motivo, vimos a inflação escapar do controle do BC precisamente durante o governo mais intervencionista dos últimos anos.

Caso a taxa de juros necessária para atingir este objetivo não seja compatível com sustentável do ponto de vista de estabilização de longo prazo de dívida (por força de política fiscal excessivamente frouxa), a capacidade de o BC controlar a inflação fica comprometida. Neste sentido, a política fiscal deve ser a base que permita o exercício da política monetária para controlar a inflação.

Obviamente há forças que perturbam este processo. A cada momento a economia está sujeita a choques de oferta (por exemplo, restrição na disponibilidade de produtos), ou de demanda (elevação dos preços de exportação relativamente aos de importação, por exemplo), ou movimentos da moeda que tornam preços de produtos transacionáveis com o exterior mais caros ou mais baratos. Cabe ao BC reagir a tais perturbações (ou "choques") por meio da política monetária. Se não o fizer, perderá o controle da inflação.

Dentro deste esquema, as expectativas de inflação têm peso considerável. Como salários e alguns outros preços são reajustados de forma infrequente (uma vez por ano, três vezes por ano, por exemplo), ao serem fixados os agentes econômicos precisam incorporar na sua determinação a inflação esperada ao longo do período de vigência dos preços. Daí a necessidade de: (a) ter uma meta de inflação, que ajude a ancorar as expectativas, isto é, sinalizar ao público qual o valor da inflação dentro do horizonte de fixação dos preços; e (b) manter uma política que, em média, implique inflação próxima à meta (mesmo que não 100% do tempo na meta).

Já o pensamento heterodoxo, um oxímoro, não vê a inflação como fenômeno monetário, muito menos como resultado de inconsistências macro. Inflação seria determinada por um "conflito distributivo", ou pela taxa de câmbio (a despeito das estimativas do coeficiente de repasse de câmbio para preços não serem particularmente elevadas: a mais recente do BC aponta para repasse de pouco mais de 1% para um dólar 10% mais caro). Nesta estrutura, o controle da inflação se dá pela interferência direta ou indireta (via câmbio) nos preços. Daí as propostas de controle de preços de tarifas públicas, combustíveis, impostos, desonerações, intervenção por "estoques reguladores", etc.

  1. Qual a sua opinião sobre o Teto de Gastos como está vigente?

Foi uma medida praticamente emergencial, destinada a sinalizar uma trajetória de gasto que pudesse reestabelecer certo equilíbrio fiscal depois de duas décadas de crescimento do gasto federal cerca de 6% ao ano acima da inflação. E funcionou muito bem neste sentido, como sugere o comportamento das taxas de juros longas.

É bem verdade que o tipo de ajuste fiscal implicado pelo teto era lento e foi ainda mais lento em função do baixo crescimento desde então, caracterizando um ajuste backloaded, em contraste com o frontloaded implementado por outros países, por exemplo, Portugal, que fez um ajuste de cerca de 9 pontos percentuais do PIB em poucos anos, dos quais cerca de 2/3 vieram de redução de gastos e 1/3 de aumento de receitas. Em nosso caso, a promessa era redução do gasto federal ao ritmo de 0,3-0,4% do PIB por ano ao longo de 10 anos.

Ocorre que para manter o teto de gastos e certo montante de gastos discricionários, necessários ao funcionamento do governo e manutenção do investimento, seria necessário reduzir o ritmo de expansão dos gastos obrigatórios, principais responsáveis pelo crescimento da despesa federal muito acima do PIB. Vale dizer, o teto precisaria ser complementado por medidas como reforma previdenciária, administrativa e orçamentária (desvinculação de gastos, principalmente). Fizemos a previdenciária e aí paramos.

Neste caso o teto se torna inconsistente com os demais mandamentos constitucionais e, portanto, insustentável. Daí a tentação para sua alteração, como foi o caso da PEC dos precatórios no final do ano passado. Dada a resistência às reformas que alterem o gasto obrigatório não é difícil concluir que novas alterações estão por vir. Da mesma forma que as demais tentativas de limitar o gasto por meios legais (das quais a Lei de Responsabilidade Fiscal foi o maior exemplo até o teto), o mundo político sempre achará formas de contornar os limites legais, ou mesmo de alterá-los para que caibam na conveniência do momento.

  1. É possível e salutar ter uma nova moeda digital Sul-americana como o SUR proposto por Haddad e o economista Gabriel Galípolo?

É um caso típico de ideia fora do lugar (e do tempo), como deveria ter sido aprendido, mas não foi, com a experiência da unificação monetária europeia. O euro foi criado supostamente como o pico de um processo de integração que durou quase 50 anos até a moeda única, exitoso do ponto de vista de integração comercial, mas que ignorou dificuldades conhecidas à época e outras que aprendemos depois.

Foi adotado sem um mercado de trabalho unificado, que eliminaria diferenças salariais entre as regiões (portanto, no contexto de uma moeda única, as diferenças de taxas reais de câmbio), sem harmonização de políticas fiscais (fora do mundo mágico da burocracia europeia) e sem mecanismos de transferências regionais de renda, que permitiriam compensar choques assimétricos em diferentes países. Isto era conhecido.

O elemento que aprendemos foi a ausência de integração financeira. Cada entidade soberana ficou responsável por seu próprio problema bancário, o que agravou a questão fiscal no caso dos países com problemas nos bancos, uma vez que o resgate do sistema financeiro pioraria as condições de sustentabilidade da dívida, derrubando seus preços. Como bancos nacionais eram os principais detentores destes títulos, isto realimentava a crise financeira e, portanto, a fiscal também.

O resultado foi uma crise que quase bebê do projeto de integração europeia com a água da moeda única.

O SUR (ou MERDOSUR, como prefiro) seria criado sem que mesmo as condições existentes na Europa à época da adoção do euro (integração comercial, livre mobilidade de pessoas, instituições de governança supranacional, por exemplo) fossem aqui replicadas. Muito menos, claro, harmonização de políticas fiscais, integração financeira e mecanismos de transferência entre países. Receita, claro, para um desastre.

Por mais que tenha sido vendida como sugestão para acelerar a integração, trata-se na verdade de uma ideia ingênua de criar uma moeda para competir, ao menos regionalmente, com o dólar (e, em menor grau, com o euro). A motivação mais profunda é o receio da transformação da infraestrutura financeira em arma (weaponization of finance), na linha do que ocorreu com as sanções russas. É o velho pesadelo infantil da esquerda: o medo que os americanos venham mandar na gente, como se estivessem minimamente preocupados com este canto irrelevante do mundo.

  1. Affonso Celso Pastore entende que o Teto de Gastos não inibe os investimentos em infraestrutura que podem ser feitos pelo setor privado através de concessões, todavia nem todos os serviços públicos se sustentam por intermédio tarifário, como fazer nesses casos?

Nestes casos precisamos entender por que não se sustentam com tarifas que remunerem o setor privado. Por exemplo, na cidade de Quixeramobim do Leste o custo de oferecer saneamento básico considerando a remuneração do investimento fica acima da capacidade de pagamento da maioria da população.

Fosse outro serviço (streaming, por exemplo), a recomendação seria não o oferecer (o que, aliás, ocorre hoje), mas sabemos que há externalidades em termos de saúde pública não capturados pelo provedor do serviço. No caso, precisamos estimar quanto vale a externalidade (quanto se economiza com despesas médicas no município, quantos anos a mais de vida saudável têm os moradores, etc.) e, de posse desta estimativa, calcular quanto deve ser o subsídio para que famílias de baixa renda possam acessar serviços de saneamento.

Obviamente, o risco de captura do governo (no caso, municipal) é grande, requerendo, como notado em outra questão a definição de marcos institucionais que minimizem este tipo de risco.

  1. Você crê em Parcerias Público-Privadas? Prefere concessões patrocinadas ou administrativas ou propõe forma diversa para impulsionar investimentos?

Nas atuais condições, não. O risco de captura é gigantesco.

  1. Você realizou uma dissertação de mestrado sobre o II PND há 32 anos, Ascensão e Queda do Leviatã, se não me engano. Quais foram as principais conclusões?

Fui examinar, na época, a tese de Antônio Barros de Castro e Eduardo Pires, para quem o II PND havia provido as bases para a rápida expansão das exportações brasileiras em seguida à maxidesvalorização de 1983, que permitiu o reequilíbrio do balanço de pagamentos em 1984 e, consequentemente, a retomada da economia depois da crise da dívida (1981-83).

No caso, havia evidências que, sim, o II PND teria promovido um aprofundamento da indústria, em particular a dita "indústria de base".

Todavia, no que tange ao financiamento do programa, não só foi baseado no endividamento externo, em oposição tanto ao aumento da poupança doméstica quanto à absorção de poupança externa na forma de investimento direto, com duas consequências cruciais.

A primeira, mais óbvia à época, foi a fragilização das contas externas do país, que redundou na crise da dívida do começo dos anos 80.

A segunda, que foi o tema do meu terceiro capítulo, foi a piora do balanço do setor público, seja pelo endividamento do governo propriamente dito, assim como de suas empresas e a necessidade de assunção das dívidas privadas. Assim, muito embora tivéssemos observado o reequilíbrio do balanço de pagamentos, não avançamos no reequilíbrio fiscal (com se vê, certos temas permanecem atuais), implicando aceleração inflacionária (hiperinflação) e desorganização adicional da economia, problema que só foi superado no em meados dos anos 90.

Daí auge (II PND) e declínio (a crise fiscal como motivo da desorganização econômica) do Leviathan. Se me acham insuportável hoje, precisavam ter me conhecido há 30 e poucos anos...

  1. Qual o papel que o Estado deve ter na Economia? E o que não deve fazer?

Ver questão 10.

  1. O que faltou que você desejaria comentar?