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Josias de Souza

Acordo com Cabral é um flerte com a avacalhação

FÁBIO MOTTA/ESTADÃO CONTEÚDO
Imagem: FÁBIO MOTTA/ESTADÃO CONTEÚDO

Colunista do UOL

16/12/2019 22h44

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Rejeitada pelo Ministério Público Federal, a proposta de delação de Sérgio Cabral foi aceita pela Polícia Federal. O acordo depende agora da homologação do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal. Ainda que Cabral tivesse revelado uma insuspeitada conexão entre a roubalheira que humilha o Rio de Janeiro e o Vaticano, o fechamento de um acordo de colaboração premiada a essa altura representará um flerte com a avacalhação.

Os termos do acerto firmado com a Polícia Federal são sigilosos. Diz-se que o neo-delator espirrou lama nas biografias de ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da União. Admita-se que não é um blefe. Suponha que Cabral dispõe de provas inequívocas. Ainda assim, qualquer acordo que resulte na abertura automática da cela do clepto-governador seria intolerável.

A eventual transferência de Cabral para a prisão domiciliar não atenuaria a cena. A imagem do larápio arrastando uma tornozeleira eletrônica entre o home theater e a sacada de um apartamento elegante de Ipanema ofenderia a sociedade do Rio, vítima do assalto.

Cabral ingressou na política fazendo pose de homem de bem. Fez carreira com ares de quem se dá bem. Pilhado com os bens do alheio, tornou-se um colecionador de ações penais. Carrega 31 processos. Já obteve uma dúzia de condenações. Acumula 268 anos de cana. Chegou a esse ponto escarnecendo dos investigadores.

Numa primeira fase, Cabral dizia ser inocente. Desmascarado, ensaiou o papel de injustiçado. Com as arcas expostas, evoluiu para o estágio da admissão do caixa dois eleitoral. Quando as sentenças ultrapassaram a marca dos 200 anos de encarceramento, encarnou o malandro carioca, pleiteando uma delação tardia. Não colou com a Procuradoria. Mas a Polícia Federal mordeu a isca.

As delações precisam seguir uma lógica. Normalmente, peixes miúdos recebem vantagens judiciais para entregar os tubarões. Adepto do estilo 'propina-ostentação', Cabral não é um bagre. Ouvido por Fachin, o procurador-geral da República Augusto Aras levou o pé atrás. A exemplo dos procuradores do Rio, Aras desaconselhou o acordo. Considerou que Cabral, como chefe de quadrilha, está no topo da cadeia alimentar do crime.

De fato, tratar alguém como Cabral como um personagem miúdo seria, a essa altura, como acomodar uma baleia dentro de uma banheira. Alega-se que o delator se dispõe a devolver R$ 380 milhões. Admitiu a propriedade do dinheiro depois que o braço fluminense da Lava Jato mapeou as remessas feitas por doleiros para o estrangeiro. É dinheiro para ser confiscado, não devolvido.

Eis a cotação do crime no Rio de Janeiro: R$ 380 milhões passaram a valer 1 Cabral. Partindo dessa baliza, qualquer acordo a ser firmado com Cabral teria de exigir um desapego irrestrito do condenado em relação a eventuais segredos que ele ainda possa deter. De resto, as autoridades precisariam ser extremamente sovinas na concessão de benefícios judiciais. Do contrário, ficará a impressão de que o crime compensa.