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Josias de Souza

'Alinhamento' de Teich não resiste à primeira live

EPA via BBC
Imagem: EPA via BBC

Colunista do UOL

17/04/2020 03h23

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O "alinhamento completo" que o oncologista Nelson Teich disse existir entre ele e Jair Bolsonaro é de vidro e pode se quebrar. A suposta harmonia não resistiu à primeira live do novo ministro da Saúde ao lado do presidente.

Levado ao ar numa transmissão ao vivo nas redes sociais do novo chefe, o substituto de Henrique Mandetta foi constrangido a falar sobre a cloroquina. Bolsonaro reiterou que, com receita médica, o medicamento pode ser usado contra a Covid-19. "É isso mesmo?", indagou.

E o doutor: "...O que acaba acontecendo é que você tem algumas indicações de que [o remédio] funciona e outras colocam alguns questionamentos sobre eficácia e toxicidade."

Num português confuso, Teich deu a entender que o uso da cloroquina depende da gravidade do estado do paciente: "Esse equilíbrio entre você poder disponibilizar quando você acha que aquilo pode estar funcionando, em situações críticas, em que as pessoas têm mais chances de morrer e aquilo pode ser usado."

O novo ministro injetou o medo em sua retórica: "Quando você tem muita incerteza, o medo vai dirigir isso também. Você coloca na mão do médico, o médico vai fazer essa escolha, vai se responsabilizar por isso."

No melhor estilo Mandetta, Teich insinuou que o uso generalizado da cloroquina depende não do achismo de Bolsonaro, mas de uma palavra final dos cientistas:

"A nossa função hoje é fazer com que essa solução seja cada vez mais rápida, com base nos dados mais precisos e confiáveis. A gente está com vários estudos aqui. Acredito que isso vai vir num espaço relativamente curto."

Noutro trecho da transmissão, Bolsonaro sugeriu ao novo auxiliar que brindasse os brasileiros com "uma mensagem de tranquilidade e precaução". Antes de passar a palavra para Teich, o presidente mencionou "uma coisa que todo mundo diz, que é quase uma unanimidade". Afirmou que "60% dos brasileiros já foram ou serão infectados" pelo coronavírus.

"A partir desse momento", prosseguiu Bolsonaro, "é que nós podemos praticamente dizer que ficamos livres do vírus, tendo em vista esse percentual grande de pessoas ter conseguido anticorpos."

Dando de barato que lidava com dados inquestionáveis, o capitão como que estimulou os brasileiros jovens a desafiar o vírus de peito aberto nas ruas. "Então, a mensagem é: cuidar dos idosos, de quem tem comorbidades. E as demais pessoas, também tomar os devidos cuidados. Mas não precisam se apavorar caso venham a ser contaminados."

"É isso mesmo?", questionou o presidente ao novo ministro. Com muito jeito, falando macio, o substituto de Mandetta esclareceu a Bolsonaro que, em meio a uma pandemia, certas coisas podem não ser as coisas certas, mesmo quando se parecem com uma "quase unanimidade".

Após fazer uma pequena digressão sobre a fragilidade das estatísticas, o novo ministro citou o risco de ocorrer "uma segunda ou uma terceira" onda de contágios. No momento, disse Teich, "a gente tem que ter um foco muito grande em colher dados".

Nas palavras do ministro, é preciso saber "qual é a incidência e a prevalência" da Covid-19. É imperioso quantificar com precisão os infectados e os mortos. "Quando você combinar os dados, vai ser muito mais fácil a gente enxergar o que acontece e traçar políticas e ações."

Teich desmentiu, delicada e didaticamente, a tese de Bolsonaro segundo a qual 60% da população brasileira já estaria imunizada. Sem excluir a hipótese de estar errado, o ministro teorizou: "...A gente vai ter uma situação em que dificilmente vai chegar naquele número que teoricamente daria uma imunidade para uma sociedade."

Para desassossego de Bolsonaro, o substituto de Mandetta insinuou que as ruas terão de permanecer em casa por mais tempo: "A gente vai ter que discutir, sim, como é que vai ser a vida das pessoas. Prefiro falar em discussão da vida do que falar em discutir economia e emprego, porque pode dar uma conotação um pouco marcada. (...) Isso está relacionado a tudo: isolamento, distanciamento, emprego, ajuda do governo."

Nelson Teich resumiu o que está por vir: "O que sobra disso é o seguinte: colher os dados, enxergar o comportamento, enxergar o que está acontecendo com as pessoas, ter calma, tomar ações, reavaliar regularmente... A gente vai ter que caminhar nessa direção. E a gente vai ter que ter o conforto de entender que cada dia vai ter um dado novo que vai ajudar a entender melhor e a tomar decisões."

Mais cedo, ao ser confirmado por Bolsonaro como substituto de Mandetta, o novo ministro dissera que não haverá mudanças bruscas em relação ao isolamento social. Durante a live, Bolsonaro ecoou: "Não vai ser um cavalo de pau que vamos dar nessa questão. Mas, gradativamente, o Brasil vai voltar a trabalhar."

O próprio Bolsonaro reconheceu que, a essa altura, a posição do governo federal sobre isolamento perdeu relevância, pois o Supremo Tribunal Federal decidiu que estados e municípios dispõem de poderes para deliberar sobre essa matéria.

Seja como for, Nelson Teich despejou nas redes sociais de Bolsonaro palavras que não ornam com o vocabulário do presidente e da sua milícia virtual. Vale a pena repetir: "...ter calma, tomar ações, reavaliar regularmente... Ter o conforto de entender que cada dia vai ter um dado novo que vai ajudar a entender melhor e a tomar decisões."

Calma? Conforto? Ai, ai, ai... O doutor parece não ter a mais remota ideia das surpresas que o aguardam em Brasília. Talvez devesse perguntar a Bolsonaro: "Quando será o seu próximo passeio pela periferia de Brasília?" Ou: "Pretende visitar alguma padaria?"