Topo

Josias de Souza

Sucessão americana já tem um vitorioso: o caos

                                JIM WATSON, Brendan Smialowski / AFP
Imagem: JIM WATSON, Brendan Smialowski / AFP

Colunista do UOL

04/11/2020 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A democracia começa na hora de votar. E termina na hora de contar. Não é a eleição que coroa o processo democrático. É a apuração. O que está acontecendo nos Estados Unidos é a transformação da contagem dos votos de uma eleição presidencial num processo de estilhaçamento de um sistema democrático. Quem apostou na confusão não se decepcionou.

A eleição de 2020 é marcada pelo ineditismo. Graças ao coronavírus, 101 milhões de americanos votaram antecipadamente, 60 milhões dos quais pelo Correio. Coisa jamais vista. Num país em que o voto é facultativo, algo como 67% do eleitorado votou. Nos últimos 100 anos, não há vestígio de semelhante adesão.

Foi como se a sociedade americana, sabendo que vive uma epidemia de polarização, buscasse na democracia uma vacina. Por mal dos pecados, as urnas não trouxeram a perspectiva de cura. Ao contrário, aprofundaram a doença.

Frustraram-se os partidários do desafiante Joe Biden. Imaginou-se que o democrata abriria vantagem segura. Mas dobrou os joelhos na largada, ao perder a Florida. Animaram-se os devotos do republicano Donald Trump, que se manteve vivo na disputa.

Alta madrugada, verificou-se que o cenário é de uma eleição apertada. Podendo prevalecer nas urnas, Trump preferiu autoproclamar-se vitorioso na marra. "Estão tentando roubar a eleição. Nunca vamos deixar", anotou o presidente no Twitter.

Trump foi além: "Nós estamos muito por cima, mas eles estão tentando roubar a eleição. Nós nunca vamos deixar eles fazerem isso. Votos não podem ser depositados depois que as urnas são fechadas!".

Não há notícia de votos enfiados em urnas lacradas. O que ocorre é que parte dos votos enviados pelo Correio no tempo regulamentar serão computados ao longo dos próximos dias.

Antevendo os movimentos do adversário, Biden fez uma declaração pública antes dos tuítes tóxicos. "A eleição não estará terminada até que todas as cédulas sejam contadas", disse ele de madrugada a um grupo de apoiadores. Trump não se deu por achado.

"Eles sabiam que não poderiam vencer e disseram 'Vamos à Suprema Corte'", disse o presidente, insinuando que o rival levaria a eleição para o tapetão do Judiciário. "Isso é uma fraude. É uma vergonha para o nosso país. Francamente, nós ganhamos esta eleição. Nós vamos à Suprema Corte."

Estima-se que a decisão da encrenca sairá das urnas de estados do meio-oeste: Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, por exemplo. Trump saiu na frente. Mas é justamente nesses pedaços do mapa onde é maior a quantidade de votos enviados pelo Correio, cuja contabilização é mais lenta.

Numa situação convencional, eleições servem para curar feridas. Abertas as urnas, o vencido cumprimenta o vencedor, que governa para o bem de todos. O diabo é que os Estados Unidos são guiados pela anormalidade. É impossível observar o país sem a sensação de estar assistindo a uma pantomima tragicômica.

O mundo está testemunhando a decomposição de um Estado que, dissessem o que dissessem os detratores, mantinha pelo menos a aparência de ser civilizado. A polarização aguda realçou todos os defeitos do modelo —da multiplicidade de regras entre os estados ao colégio eleitoral.

A apuração dos votos será lenta. Mas já é possível proclamar o grande vencedor da disputa presidencial americana. Nem Biden nem Trump. Prevaleceu o caos. A democracia dos Estados Unidos sai do processo eleitoral mais doente do que entrou.