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Josias de Souza

Aristocracia do Judiciário quer furar fila da vacina

                                 Vacinas podem chegar ao Brasil já em janeiro                              -                                 BRYAN R. SMITH / AFP
Vacinas podem chegar ao Brasil já em janeiro Imagem: BRYAN R. SMITH / AFP

Colunista do UOL

23/12/2020 06h26

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Era só o que faltava. Os tribunais superiores de Brasília desejam furar a fila da vacina contra a Covid. Requisitaram à Fiocruz doses em quantidade suficiente para imunizar servidores e magistrados. Para justificar o privilégio, STF e STJ recorreram ao escárnio. Alegam estar fazendo um favor ao país, pois a ausência da aristocracia judiciária nos hospitais e postos de saúde tornará mais ágil a vacinação dos brasileiros sem pedigree.

No ofício que endereçou à Fiocruz, o Supremo Tribunal Federal pediu uma "reserva de doses" para 7 mil pessoas. Escreveu que deseja "contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa História." Anotou que, realizando sua própria vacinação, liberará "equipamentos públicos de saúde para outras pessoas..." O Superior Tribunal de Justiça ecoou os mesmos argumentos.

A Fiocruz fabricará no Brasil a vacina da logomarca Oxford-AstraZeneca. Vinculada ao Ministério da Saúde, a entidade não cogita fornecer vacinas senão para o Programa Nacional de Imunização, que se encarregará de distribuir as doses para estados e municípios, quando for possível.

A fila é um microcosmo da democracia. Rico ou pobre, o sujeito se posiciona no seu lugar e espera sua vez. No caso da vacina contra a Covid, a fila tornou-se uma questão de vida ou morte. Como não há imunizantes para todos, foi necessário fixar uma escala de prioridades. Vacinam-se primeiro os profissionais da trincheira da saúde. Depois, os brasileiros com doenças preexistentes. Na sequência, os idosos do grupo de risco, incluindo algumas togas.

Na prancheta do comunista Niemeyer, Brasília era um Éden igualitário. Junto com Lúcio Costa, idealizou um lugar onde todos viveriam encaixotados em prédios iguais, plantados em superquadras idênticas. Fora da prancha de desenho, a cidade converteu-se em protótipo de privilégio e segregação.

As edificações de Brasília foram dispostas segundo uma lógica setorial. Há o setor hoteleiro, o residencial, o comercial, o de clubes, o de embaixadas... Hoje, os habitantes da Capital estão distribuídos com a mesma lógica do resto do país. Há os setores de ricos e os setores de pobres. Existe a Brasília dos poderosos e a Capital dos impotentes.

A impaciência da cúpula do Judiciário subverte qualquer noção de justiça. Abre-se um abismo entre os tribunais e o Brasil. Aqueles prédios públicos monumentais, assentados no coração de Brasília... E o país lá longe.

Já se sabia que um pedaço da sociedade brasileira não tomará vacina porque confia em Bolsonaro e tem medo de virar jacaré. Agora, quando a crise sanitária entra numa fase em que os brasileiros começarão a morrer por falta de vacinas, descobre-se que as Cortes brasilienses têm a sensibilidade de uma pedra.

Se Deus intimasse a cúpula do Judiciário a optar entre os seus quadros e a clientela preferencial das vacinas, ouviria uma resposta fulminante: morra a turma do grupo de risco! E com isso ficaria claro que, para certos setores, o privilégio é o grande acontecimento. Só o privilégio existe. O resto é uma fria paisagem pandêmica.

STF e STJ inventaram uma nova máxima: Vacina pouca, meu imunizante primeiro!