A lenda do fã que trocou o mito pelo isolamento
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Acharam-no por acaso. Sua aparência era aterradora. Estava um fiapo, imundo, a barba na altura do peito. Não falava. Grunhia.
Nenhum documento. Trazia apenas uma foto de Bolsonaro no bolso de trás da bermuda. Vestia uma camiseta surrada, na qual se lia: "Direita Já".
Levaram-no para um hospital. Demorou duas semanas para voltar a si. Neste finalzinho de 2020, começou a falar coisa com coisa.
Em 2018, após celebrar a vitória do capitão e o anúncio de que Guedes e Moro seriam superministros, perdera-se na selva.
Sobrevivera durante dois anos por milagre, alimentando-se de ervas e raízes. O dano mental superara as sequelas físicas.
— Como vão as coisas?
O médico hesitou. Um sujeito naquelas condições, ainda traumatizado, poderia sofrer uma recaída.
— As coisas?
— Sim, doutor, as coisas. Como vão as coisas?
— Vão bem, muito bem.
— Seja mais específico, doutor. Fale-me da agenda do Paulo Guedes. Vendeu muitas estatais? Zerou o déficit fiscal? O PIB está bombando?
— Veja bem, não entendo dessas coisas. O pouco que sei é o que vejo de relance no noticiário.
— Não me enrola, doutor. O Guedes zerou o déficit no primeiro ano? Arrecadou R$ 1 trilhão com privatizações, como prometeu? O PIB decolou?
— Nenhuma estatal foi vendida.
— Mas, mas...
— Sabe como é... O Congresso... Coisa e tal... O déficit fiscal explodiu. Mas foi por culpa do coronavírus, não do ministro. Graças à pandemia, entramos em recessão.
— Coronavírus?!?!? Pandemia?!?!? Assim o senhor me assusta, doutor.
O médico sacou uma seringa. Enfiou a agulha num frasco de sedativo. O cenho crispado denunciava-lhe a tensão.
— Fique calmo, não há razão para estresse. Bolsonaro está bem-posto nas pesquisas.
— Não poderia ser diferente, doutor. Quem tem Sergio Moro como ministr... Não, não, doutor. Injeção não!
Acordou 48 horas depois. A enfermeira, desavisada, deixara a televisão ligada no telejornal. Olhos esbugalhados, viu todo o noticiário. Covid, quase 200 mil mortos, vacinação no exterior, falta de vacinas e seringas no Brasil, a Europa trancada em casa, o brasileiro desafiando o vírus em grandes festas e aglomerações, o Supremo investigando a denúncia de Moro sobre a interferência do mito na Polícia Federal, o operador de rachadinhas da primeira-família em prisão domiciliar, o apoio de Bolsonaro ao candidato do centrão à presidência da Câmara, 14,2 milhões de desempregados, inflação com viés de alta...
Fugiu naquela mesma noite, antevéspera da virada de 2020 para 2021. Um taxista diz tê-lo deixado na boca da selva. Contou que, no caminho, ouviu no rádio do carro uma retrospectiva com as frases de Bolsonaro sobre a pandemia: "é só uma gripezinha", "e daí", "todos vamos morrer um dia", o Brasil "tem que deixar de ser um país de maricas", "vacina obrigatória só aqui no Faísca", o cachorro da família Bolsonaro, "se você virar um jacaré é problema seu..."
O motorista conta que o passageiro saltou com o táxi ainda em movimento. Embrenhou-se na mata aos pulos. Grunhia como um javali. Ainda não foi encontrado. Isolou-se.
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