Topo

Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

General abandona Brasil de Alice e tenta arrastar Bolsonaro para país real

Colunista do UOL

28/04/2021 03h09

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O general Luiz Eduardo Ramos não mudou apenas da Secretaria de Governo para a Casa Civil da Presidência. Há um ano, vivendo entre dois mundos —o País das Maravilhas e o País do Espelho—, o general pedia aos jornalistas um noticiário de Alice, livre de cadáveres. Sem alarde, ingressou no Brasil real pela porta dos fundos, vacinando-se às escondidas. "Porra, eu quero viver!" Tenta agora arrastar Bolsonaro para a realidade: "A vida dele corre risco".

Em abril de 2020, quando ainda cuidava da articulação política do Planalto, o general Ramos estava abespinhado com a imprensa. Achava que o noticiário trazia "uma cobertura maciça dos fatos negativos." Incomodava-se especialmente com o excesso de cadáveres e de esquifes. "No jornal da manhã, é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão e é corpo."

Nessa ocasião, os mortos por Covid eram contados na casa dos 3 mil. E o general rogava aos meios de comunicação que pendurassem fatos positivos nas manchetes. Coisa digna de Lewis Carroll e do País das Maravilhas criado por ele para sua personagem Alice. Nos telejornais do ministro Ramos, haveria um vácuo no qual a realidade deixaria de existir. Restaria apenas a fantasia.

No universo criativo de Carroll, Alice, depois de visitar o País das Maravilhas, decidiu atravessar o espelho de sua casa. Entrou no País do Espelho, onde enxergou tudo ao contrário. Era nesse país que vivia o general Ramos. Atrás do espelho do Planalto, havia um presidente que chamava pandemia de "gripezinha" e fechava os olhos para os mortos: "Eu não sou coveiro!"

No Brasil maravilhoso que o general Ramos havia idealizado, o noticiário refletia a realidade invertida do país do espelho, onde brilhavam Bolsonaro e a cloroquina. Quem ousasse mostrar o mundo real passaria por impatriótico. Como não foi possível esconder os caixões e os corpos, agora roçando a casa dos 400 mil, a ficha do general caiu.

Sem saber que sua voz era transmitida pela internet, o general confessou ter estendido o braço para uma vacina em segredo. Seguiu o protocolo de ocultação do Planalto. "Tomei escondido, né?, porque a orientação era para não criar caso, mas vazou."

Observado pelos ministros Paulo Guedes (Economia) e Marcelo Queiroga (Saúde), o general abriu o coração: "Não tenho vergonha, não. Eu tomei e vou ser sincero, porque, porra, eu, como qualquer ser humano, eu quero viver. E se a ciência e a medicina estão dizendo que é a vacina, né, Guedes, quem sou eu para me contrapor?"

O general revelou o seu esforço para transportar Bolsonaro do país das maravilhas para o Brasil real, onde a sub-vacinação faz surgir variantes novas do coronavírus. Ramos quer vacinar o amigo: "Estou envolvido pessoalmente, tentando convencer o nosso presidente, independente de todos os posicionamentos, que nós não podemos perder o presidente para um vírus desse. A vida dele, no momento, corre risco." Bolsonaro tem 66 anos.

Num país em que um ministro palaciano toma vacina contra Covid escondido e o presidente da República precisa ser convencido do óbvio, só há duas alternativas possíveis: ou está todo mundo meio doido no governo, ou o brasileiro está completamente maluco.