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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Bolsonaro acha que pode compensar sua inépcia sanitária com misticismo e fé

Colunista do UOL

12/06/2021 15h04

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Deus, como se sabe, existe. Mas Bolsonaro está empenhado em demonstrar que Ele já não dá expediente em tempo integral. Age como se desejasse compensar sua inépcia sanitária com misticismo e fé.

Há três dias, o capitão sustentou num culto evangélico em Anápolis (GO) que vacina é "experimental" e que o "tratamento precoce" com drogas como a hidroxicloroquina é um "milagre". Neste sábado, o presidente comandou em São Paulo mais um passeio aglomerativo. Foi batizado de "Acelera pra Cristo". Compareceram milhares de motociclistas. Terminou num comício em que foram reiterados os despautérios do culto de Anápolis. Mantido esse ritmo, a CPI da Covid terá de aprovar um requerimento de convocação de Deus.

Não é de hoje que Bolsonaro constrange os céus. O mito já deixou claro que, depois dele e dos zeros à esquerda da família —01, 02, 03 e 04—, o Brasil está acima de tudo, estando Deus acima de todos. O presidente acha que não deve nada a ninguém, muito menos explicações. Mas saca um versículo do Evangelho de João sempre que é pilhado numa mentira: "Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".

Bolsonaro voltou a mentir no motomício de São Paulo ao escorar em documento do TCU a fake News da notificação inflada de mortos por covid. "Mais um indício, ou melhor, uma constatação da supernotificação dos mortos", declarou Bolsonaro, do alto de um caminhão de som. Afirmou que, excluídos os mortos desinformados, que desceram à cova imaginando que foram vítimas do vírus, o Brasil seria um dos países em que a pandemia fez o menor número de cadáveres no mundo.

Bolsonaro proclamou-se "o único chefe de Estado do mundo que diz o que pensa sem temer as consequências." De fato, ele parece confiar piamente no escudo fornecido por Augusto Aras e Arthur Lira. Escorando-se no procurador-geral que não procura e no presidente da Câmara que engaveta, o capitão voltou a caprichar na retórica anticientífica.

Num discurso permeado por ataques a João Doria, o patrono da "vacina chinesa", Bolsonaro estimulou o uso de cloroquina e desmereceu as vacinas. "Não há nada com comprovação científica". O que salva é o "tratamento precoce", declarou. De resto, reiterou seu desapreço pela máscara.

O presidente encerrou o motomício agradecendo o apoio dos devotos evangélicos. Suas últimas palavras foram: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos."

Prisioneiro de suas verdades alternativas, o capitão viajou a São Paulo agarrado a uma passagem bíblica que aprendeu de André Mendonça, o assessor-pastor que se equipa para ocupar no Supremo a poltrona reservada ao substituto terrivelmente evangélico de Marco Aurélio Mello.

Trata-se de uma frase atribuída a Jesus no Evangelho de Mateus: "Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles".

Deus precisa ser convocado pela CPI para confirmar se efetivamente seu filho voltou à Terra numa motocicleta. E para que não fique nenhuma dúvida quanto ao envolvimento do Pai no suposto "milagre" da cloroquina.

Não é justo enxovalhar a reputação divina, que levou tantos anos para ser construída —ainda mais neste ambiente de suspeição generalizada, com o general Eduardo Pazuello e o "pária" Ernesto Araújo rogando ao Supremo Tribunal Federal que proteja os seus sigilos da sanha de Renan Calheiros.

O que mais espanta na conjuntura brasileira não é a presença nas ruas de milhares de motociclistas com disposição para acelerar o encontro com Cristo por Bolsonaro. Ou a presença de milhares de oposicionistas no asfalto, dias atrás, brandindo o argumento de que o anticristo do Planalto é mais perigoso do que o vírus. O que espanta mesmo é a constatação de que a insensatez coletiva campeia num ambiente marcado pela ausência de quase meio milhão de brasileiros que a covid enterrou.

Convocado pela CPI, Deus talvez abrisse sua exposição preliminar assim: "Me incluam fora dessa!" O Altíssimo não teria de passar pelo constrangimento de recorrer ao Supremo para ver respeitado o direito de mentir para não se autoincriminar.

Omar Aziz seria dispensado de exigir do Depoente o compromisso de dizer a verdade. A CPI está apinhada de pecadores. Mas nenhum político se declara ateu. Portanto, nem a bancada da cloroquina ousaria colocar em dúvida a palavra do Senhor.

Bolsonaro costuma dizer que cumpre na Presidência "uma missão de Deus". Repete à exaustão que "foi um milagre estar vivo" depois da facada que levou na campanha de 2018. Sustenta que foi "outro milagre ter ganho as eleições." No culto de Anápolis, declarou: "Deus tem me ajudado a governar." As palavras do presidente mergulham o país numa atmosfera de misticismo em que a escassez de vacinas é compensada pelo excesso de fé.

Deus decerto não perderia a oportunidade de protestar na CPI contra o que fizeram com o seu enviado. E Renan, estalando de pureza moral, pediria licença para fazer uma observação antes de iniciar o interrogatório. Exibindo a plaquinha com o número de mortos por covid, o senador repetiria que "Bolsonaro é um genoci..." Deus interromperia o relator da CPI para esclarecer que se referia a Jesus Cristo, não a Bolsonaro.

Um senador petista ficaria tentado a pedir licença para, antes de tratar das questões sobre a pandemia, esclarecer uma dúvida que atormenta o PT: "Bolsonaro atribui a Deus a vitória dele sobre o Fernando Haddad. Foi mesmo o Senhor quem elegeu o Bolsonaro?" O depoente seria conciso: "Não, foram os senhores." Omar Aziz encerraria o depoimento. "Sem mais perguntas", diria o presidente da CPI. Ficaria entendido que Deus é inocente.