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Josias de Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

CPI proporciona a Brasília momentos surreais

Colunista do UOL

01/07/2021 19h33

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Num Brasil em permanente mutação, em que negacionismo evolui para o negocismo, certas coisas permanecem fiéis a alguns princípios. Por exemplo: o desapreço com que o governo Bolsonaro trata a lógica e o interesse público na gestão da pandemia. Graças à CPI da Covid, Brasília está mais surrealista do que o habitual.

Luiz Paulo Dominguetti Pereira, cabo da Polícia Militar de Minas Gerais, confirmou à CPI ter representado a Davati, empresa dos Estados Unidos, numa negociação para a venda de 400 milhões de vacinas do laboratório AstraZeneca para o Ministério da Saúde. Jantou com o então diretor de Logística da pasta, Roberto Dias. Foi mordido num pedido de propina: US$ 1 por dose. Disse ter recusado a oferta, testemunhada por um tenente-coronel e um coronel do Exército.

Convém repetir: Uma empresa americana alegava dispor de grande quantidade da mercadoria mais cobiçada do mundo: vacinas anti-Covid. Decidiu oferecer ao Brasil. Sabia que seria difícil, pois o governo brasileiro relutava em adquirir vacinas da Pfizer, da Johnson & Johnson e do Butantan. Escolheu como seu representante o cabo Dominguetti, que nas horas vagas troca a farda pela maleta de mascate de vacinas. Embora a AstraZeneca não opere com intermediários, o diretor de Logística do ministério convidou o cabo para jantar. E se ofereceu para ser subornado.

Enquanto o cabo Dominguetti depunha à CPI, veio à luz uma nota de Roberto Dias, um infiltrado do Centrão na Saúde. Admitiu ter jantado com o cabo. Negou a propina. Nem o governo parece lhe dar crédito, pois já o demitiu. Fez por pressão o que deixou de fazer por opção há três meses, quando Bolsonaro foi informado de que o mesmo personagem fizera pressão para liberar pagamento antecipado de US$ 45 milhões por um primeiro lote da vacina indiana Covaxin, que jamais foi entregue.

O cabo Dominguetti fez soar na CPI um áudio com a voz do deputado Luís Miranda. Insinuou que o deputado negociava vacinas com a americana Davati enquanto denunciava a Covaxin a Bolsonaro. Por um instante, o depoente ganhou a aparência de um cavalo de madeira em cuja barriga o bolsonarismo transportava para dentro da CPI um presente de grego: a desqualificação do deputado que iluminou o porão das vacinas.

Como cavalo de madeira não trota, o cabo foi desmentido. O áudio era do ano passado. Não tratava de vacinas. O deputado negociava luvas cirúrgicas. Dominguetti recuou. "Chapéu de otário é marreta", queixou-se Omar Aziz, presidente da CPI. O celular do depoente foi apreendido para perícia.

O setor de logística da pasta da Saúde tornou-se Casa da Mãe Joana. Isso aconteceu durante a gestão do general Eduardo Pazuello. Logo ele, tido como um ás da logística. Ouve-se ao fundo o silêncio de Bolsonaro sobre a participação do deputado Ricardo Barros nos negócios do Ministério da Saúde.

Nesta sexta-feira, o depoimento em que o bolsonarista Luis Miranda disse ter ouvido do presidente a observação de que seu líder na Câmara estava envolvido no rolo da Covaxin completará uma semana. Bolsonaro ainda não desmentiu a informação do ex-amigo Miranda. Ricardo Barros permanece na liderança do governo.

Continua em pé a acusação de propina no conto do vigário da multinacional americana. Suspenso, o contrato da Covaxin ainda não foi revogado. Permanece retida a cifra de R$ 1,6 bilhão reservada para o pagamento do imunizante indiano, ainda sem o aval da Anvisa. Brasília vive mesmo dias surreais.