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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Propaganda política ilegal é crime que compensa

Stefan Pastorek/UOL
Imagem: Stefan Pastorek/UOL

Colunista do UOL

26/02/2022 04h46

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Não é verdade que o crime não compensa. A questão é que, quando compensa, muda de nome. Na seara eleitoral, por exemplo, a delinquência foi rebatizada de esperteza. Até o final de junho, o brasileiro será assombrado no horário nobre noturno do rádio e da TV por inserções de 30 segundos de propaganda dos partidos políticos.

Começaram a ser exibidas nesta semana as peças regionais. Vão ao ar a partir deste sábado os comerciais nacionais. Pela lei, é crime usar a propaganda dos partidos para fazer campanha dos candidatos. Mas esse é um dos crimes que compensam no Brasil.

No papel, a campanha só começa em 16 de agosto. E a propaganda eleitoral no rádio e na TV vai de 26 de agosto a 29 de setembro. Mas os maiores partidos usarão suas inserções para trombetear candidatos, sobretudo os presidenciáveis.

A ilegalidade é suprapartidária e reincidente. Repete-se em todas as campanhas, num movimento em que uma mão suja a outra. O que torna o crime eleitoral compensatório é a pena: multas de R$ 5 mil a R$ 25 mil. Coisa risível.

Na internet e nos comícios, a lei prevê que a propaganda de campanha começa em 16 de agosto. Mas já corre solta. Candidato à reeleição, Bolsonaro injeta comícios camuflados na agenda presidencial em ritmo frenético. Dos palanques mal dissimulados, os atos de campanha migram para as redes sociais.

A hipocrisia não é uma exclusividade de Bolsonaro. Favorito na corrida eleitoral deste ano, Lula conhece bem o fenômeno. Fazia troça da Justiça Eleitoral quando percorreu o país carregando sobre os ombros o poste da candidatura presidencial de Dilma.

Em março de 2010, por exemplo, Lula desnudou a piada num comício travestido de atividade governamental. Deu-se na cidade paulista de Osasco. O então presidente da República falava para uma multidão atraída pela entrega das chaves de apartamentos populares. Exibia Dilma a tiracolo. A alturas tantas, escarneceu de uma multa que o TSE lhe impusera na semana anterior.

"Não adianta vocês gritarem nome porque eu já fui multado pela Justiça Eleitoral, R$ 5 mil, porque eles disseram que eu falei o nome de uma pessoa. Pra mim não tem nome aqui", declarou Lula. E a plateia: "Dilma, Dilma, Dilma..." Lula, entre risos, completou: "Se eu for multado, vou trazer a conta pra vocês. Quem é que vai pagar a minha multa? Levanta a mão aí".

Nessa época, presidia o TSE o ministro companheiro Ricardo Lewandowski. Instado a comentar a ineficácia das penas, apontou para o Legislativo: "Aplicamos rigorosamente as multas que estejam previstas na lei eleitoral. Não cabe nos pronunciarmos sobre a eficácia das multas, se poderia ser maior ou menor. Foi o Congresso que fixou os valores".

Tudo sobe no Brasil, exceto os valores das multas por infrações eleitorais. As punições são raras. Quando ocorrem, costumam impor aos infratores a pena mínima de R$ 5 mil. O lucro político obtido com a exposição dos candidatos é maior do que o prejuízo financeiro.

No caso da publicidade partidária no rádio e na TV, há uma pena adicional: a perda do tempo de propaganda no semestre seguinte. Ou seja: o partido ficaria impedido de exibir seus comerciais na primeira metade de 2023, ano em que não há eleição. Uma piada.

A propaganda partidária havia sido extinta em 2017. Num rasgo de generosidade, os parlamentares diziam que era preciso compensar o custo da criação do fundão que financia com verbas públicas as eleições no Brasil. O altruísmo durou pouco.

No ano passado, deputados e senadores tiraram o atraso. Além de recriar a propaganda dos partidos, reservaram R$ 44,3 bilhões do orçamento federal de 2022 para assegurar a sua própria sobrevivência política.

Esse montante inclui uma versão anabolizada do fundão eleitoral (R$ 4,9 bilhões), o fundo partidário (R$ 1,1 bilhão), a renúncia tributária de emissoras de rádio e TV pela veiculação de propaganda eleitoral (R$ 738 milhões) e as emendas orçamentárias dos congressistas (R$ 37,6 bilhões). Com verba pública saindo pelo ladrão, sobra dinheiro para pagar as multas mixurucas dos crimes de campanha.

Nessa época de semântica desvairada, já não existem crimes nem criminosos na política. Há apenas pessoas movidas pela ideologia do dinheiro. Num ambiente assim, o melhor a fazer é revogar a hipocrisia. Libera-se a campanha eleitoral o ano inteiro. E comprime-se o preço da democracia, desinflacionando-o.

No Brasil, a precariedade dos candidatos transformou o voto num equívoco renovado de quatro em quatro anos. Numa democracia assim, pode-se exigir tudo do eleitor, exceto que faça o papel de bobo. Já basta ter que desfrutar desse regime que concede às pessoas ampla e irrestrita liberdade para fazer besteiras por conta própria.