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Josias de Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Lula recoloca as estatais na trilha da roubalheira

Adriano Machado/Reuters
Imagem: Adriano Machado/Reuters

Colunista do UOL

08/04/2023 03h05

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O problema não é retirar sete empresas públicas do Programa Nacional de Desestatização. Nos palanques de 2022, Lula avisara que não venderia estatais. A questão é que o Planalto e seus aliados recolocam as estatais na rota da maracutaia. Já se enxerga o pus no fim do túnel.

A conversão da promessa de campanha em decisão de governo coincide com a erosão da legislação que impedia o aparelhamento político de estatais. A novidade chega num instante em que o governo Lula, escorado em decisão liminar do Supremo Tribunal Federal, oferece a hierarcas da política cargos de direção em bancos e empresas públicas.

Há quatro meses, o PCdoB, partido que gravita na orbita do petismo, entrou com ação na Suprema Corte questionando a quarentena de três anos imposta pela Lei das Estatais à nomeação de dirigentes partidários e de políticos envolvidos em campanhas eleitorais para cargos em companhias do governo.

A lógica do futebol

Em março, o ministro Ricardo Lewandowski, celebrado por Lula como uma toga companheira, apressou-se em conceder antes de sua aposentadoria liminar acolhendo a tese segundo a qual o veto previsto na Lei das Estatais seria inconstitucional, pois aviltaria os "direitos fundamentais" dos políticos ao bloquear o acesso deles às poltronas de estatais.

Como se tudo isso fosse pouco, três partidos da coligação que elegeu Lula —PSOL, Solidariedade e, de novo, o PCdoB— protocolaram no Supremo ação que pede a anulação de multas previstas em acordos de leniência celebrados com o Estado por empreiteiras que confessaram participação no assalto à Petrobras. Coisa de R$ 8 bilhões. O caso está sobre a mesa do ministro terrivelmente evangélico André Mendonça.

Mal comparando, a corrupção segue a lógica do futebol. O sujeito pode ser um craque da roubalheira, mas não marca o gol sozinho. Há toda uma estrutura anterior que prepara a chegada à rede: os clubes, os centros de treinamento, os técnicos e, finalmente, o time em campo, armando as jogadas e criando as possibilidades de chegar ao gol —ou aos cofres.

As próximas jogadas

Na prática, ao manter empresas sob o controle do Estado sem explicar adequadamente o que planeja fazer com elas, o Planalto arma as próximas jogadas. Para justificar a presença de estatais no balcão, Lula repete um de seus bordões prediletos: "Não se pode criminalizar a política". Confunde amnésia com consciência limpa ao esquecer de mencionar que a atividade é criminalizada pelos políticos que cometem crimes.

Algumas das estatais excluídas do programa de desestatização despertam a cobiça da oligarquia política. Entre elas, os Correios, a Conab, a Telebras, a Pré-Sal S.A. e a Nuclebras. Lideranças partidárias passaram a mencionar com hedionda naturalidade a inclusão de companhias públicas no âmbito do toma lá, dá cá. Líder do PT na Câmara, o deputado Zeca Dirceu disse dias atrás, numa entrevista ao UOLNews, que "a formação do governo ainda está em curso". Incluiu no rol de nomeações por fazer, além de postos na Esplanada e nos estados, "as diretorias, as vice-presidências da Caixa Econômica, do Banco do Brasil e de outras estatais."

O parlamentar declarou que o governo leva em consideração "o perfil técnico" e a "moralidade" do indicado. Atribui a demora na efetivação das nomeações a investigações prévias que seriam feitas pela Abin, a agência de "inteligência" do Planalto. "No mundo todo é assim", declarou Zeca Dirceu. Ecoando Lula, ele afirmou que considerar indicações partidárias como algo "pejorativo", "criminoso" ou "imoral" corresponde a "criminalizar a política".

A arte da conversa

Durante a campanha, Lula teve dificuldade para lidar com o tema da corrupção. Viu-se compelido a admitir, em entrevistas e debates, os desvios de conduta que tisnaram a imagem de governos petistas. Numa entrevista à CNN, repetiu argumentos que esgrimira na bancada do Jornal Nacional, da TV Globo. Embora reconhecesse os desvios praticados na Petrobras, ponderou que a "política é a arte de conversar". Disse que um presidente da República não pode conversar senão "com quem está na cadeira, eleito como deputado, como senador, goste ou não goste".

Perguntou-se a Lula se sabia do loteamento político na Petrobras. E ele: "Isso acontece na democracia de qualquer país do mundo". Deixou claro que os partidos que integravam sua coligação teriam "direito de indicar" pessoas para cargos na engrenagem federal. Insistiu: "Isso faz parte da democracia." A certa altura, declarou: "As pessoas que eu indiquei para a Petrobras eram pessoas com mais de 30 anos [na empresa]. Não era um corpo estranho."

Chama-se Paulo Roberto Costa o primeiro delator da roubalheira na Petrobras. Era chamado por Lula de "Paulinho". Ao firmar acordo de delação no alvorecer das investigações do escândalo do petrolão, Paulinho, já falecido, declarou ter trabalhado na estatal por 27 anos "sem nenhuma mácula". De repente, foi indicado para a diretoria de Abastecimento pelo PP, partido do atual presidente da Câmara, Arthur Lira, e do ex-chefe da Casa Civil de Bolsonaro, Ciro Nogueira.

A prece de São Francisco

Foi a partir do apadrinhamento político que Paulo Roberto meteu-se em transações corruptas. Contou que passou a operar segundo a regra da oração de São Francisco: "É dando que se recebe". Nesse jogo, dão as cartas partidos políticos que são a favor de tudo ou contra qualquer outra coisa, desde que possam plantar bananeira dentro dos cofres dos ministérios e das estatais.

Não há pecados originais nesse evangelho. As escrituras do fisiologismo vêm de longe. Durante a sua Presidência, José Sarney pagou todos os cheques assinados por Tancredo Neves antes de morrer. Fernando Collor imaginou que poderia desalojar os suspeitos alheios para abrigar os seus próprios cúmplices. Foi deposto.

Fernando Henrique Cardoso grudou no balcão um rótulo intelectual, situando a barganha em algum lugar entre as duas éticas de Max Weber —a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Na campanha de 2002, Lula prometeu restaurar a moralidade. Eleito, produziu mensalões e petrolões. Deixou para Dilma Rousseff um legado de perversões.

A reiteração do erro

Foi dando que Michel Temer livrou-se de três denúncias criminais na Câmara. Para conservar mais de 140 pedidos de impeachment no gavetão de assuntos pendentes de Arthur Lira, Bolsonaro transferiu a imoralidade de baixo da mesa para dentro do Orçamento federal, que passou a conter milionárias rubricas secretas.

Numa evidência de que, na política, é errando que se aprende... a errar, Lula 3 se equipa para deixar tudo mais ou menos como está, para ver como fica. No esforço para obter uma base de apoio legislativo, o presidente não restringiu a negociação aos partidos que compuseram sua coligação. Incorporou à caravana o centrão bolsonarista e suas adjacências, adensadas por legendas que estão no Poder desde a chegada das caravelas.

Se a história do Brasil pós-redemocratização ensina alguma coisa é que não se chega a resultados diferentes a partir da reincidência de métodos manjados. Aos pouquinhos, o governo seminovo vai se transformando em novos escândalos esperando na fila para acontecer.

O circo

Há no Brasil 130 companhias estatais. Desse total, 18 foram classificadas como deficitárias —ou "dependentes"— no mais recente boletim das empresas públicas, referente ao terceiro trimestre de 2022. Para continuar funcionando, recebem aportes regulares do Tesouro Nacional. Estão inseridas na categoria de "dependentes" três das sete estatais que Lula excluiu do programa de desestatização: Telebras, Conab e Empresa Brasileira de Comunicação (EBC), que abriga sob seu guarda-chuva a TV Brasil, a Agência Brasil e uma rede de emissoras de rádio.

Os críticos dos empreendimentos governamentais costumam repetir nos salões de Brasília uma anedota em que o elefante é descrito como um camundongo construído a partir de especificações definidas pelo Estado. O economista Delfim Netto, ex-ministro de governos militares e ex-deputado federal, costumava dizer que, se o governo assumisse a gestão de um circo, o anão começaria a crescer.

Abstraindo-se dos chistes o fator caricatural, Lula conspira contra si mesmo ao se contrapor às privatizações sem esclarecer ao brasileiro que se prepara para entregar ao Fisco suas declarações de Imposto de Renda o que pretende fazer com os negócios do Estado, inclusive os deficitários, além de submetê-los aos apetites dos operadores do varejo da baixa política. O espetáculo é arriscado. É como se o presidente cutucasse com o pé os responsáveis pela bilheteria do circo para ver se eles mordem.