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Hiperdesinformação das redes revitaliza imprensa
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Em qualquer rodinha é muito fácil reconhecer um jornalista: é o que está falando mal do jornalismo. Nem sempre foi assim. Machado de Assis escreveu em 23 de outubro de 1859 uma crônica laudatória sobre a imprensa. Chama-se "A Reforma pelo Jornal''. Começa assim: "Houve uma coisa que fez tremer as aristocracias, mais do que os movimentos populares; foi o jornal''.
A crônica de Machado, à época um jornalista com tenros 20 anos, festejava a ampliação dos domínios da palavra: "A imprensa, que encarnava a ideia no livro, (...) sentia-se ainda assim presa por um obstáculo qualquer; (...) abriu pois uma represa que a impedia, e lançou-se (...) ao novo leito aberto: o pergaminho será a Atlântida submergida''.
Decorridos quase 164 anos, a palavra desbravou fronteiras que não cabiam nem mesmo na imaginação de um escritor como Machado de Assis. O texto rompeu a relação de dependência que mantinha com o papel de livros e jornais. Não bastassem o rádio e a televisão, o verbo passou a disputar espaço nas nuvens de elétrons da internet com memes e trucagens.
Confrontada com tantos meios de propagação, a imprensa virou, ela própria, notícia. Os veículos de comunicação passaram a viver uma quadra nebulosa, sacudidos por uma atmosfera que misturou contestação e hiperconcorrência. Vitaminada pelo algoritimo, a empulhação fantasiou-se de informação.
Habituada a se nutrir de crises alheias, a imprensa rala, em plena Idade Mídia, a sua própria crise. Se o autor de "Dom Casmurro" pudesse reescrever a crônica de 1859, talvez modificasse o título. Em vez de "A Reforma pelo Jornal", anotaria: "A Reforma do Jornal". Ou, melhor ainda: "A Destruição pelas Redes".
O linguista americano Noam Chomsky escreveu certa vez que a imprensa opera sob os efeitos do sistema econômico. Segundo o seu raciocínio, os meios de comunicação não passam de "empresas enormes, que integram conglomerados ainda maiores". Tais conglomerados são, por sua vez, "integrados com o nexo Estado-privado que domina a vida econômica e política".
Eis que surgiram os superconglomerados digitais. Operando acima do Estado e à margem das leis, tornaram-se empreendimentos supranacionais. Mal comparando, as plataformas das bigh techs viraram monarquias paralelas e autossuficientes. Nelas, reina a monetização. Se o ilícito dá lucro, passa como lícito pelo hipotético filtro do monitoramento das redes.
As redes em que os mentirosos mentem são mais importantes do que suas mentiras. As plataformas invadidas por criminosos são mais relevantes que seus crimes. Do mesmo modo, os filhos ilegítimos da internet são muito mais jornalísticos do que os filhos legítimos.
Se não fosse o fedor, ninguém valorizaria o perfume. Malcheirosas, as redes sociais realçaram, por contraste, as emanações aromáticas que exalam do jornalismo. O noticiário produzido por profissionais do ramo tornou-se o local ideal para o surgimento de um ambiente inteiramente novo. Caos não falta.
Antes do boom das redes sociais, o sociólogo francês Alain Touraine era uma das poucas vozes a temperar as críticas à imprensa com um lembrete que servia de contraponto para a acidez de Noam Chomsky. Realçava a importância dos meios de comunicação como "locus indispensável e cada vez mais importante da vida pública''.
Hoje, o jornalismo vai se reconvertendo em gênero de primeira necessidade. É tão necessário que as big techs pirateiam as notícias sem remunerá-las. Além de perscrutar a verdade, a imprensa desmonta inverdades. Faz isso em múltiplas plaraformas.
Já na sua época, Machado de Assis mencionava a relevância da liberdade de informar. Desdenhava dos riscos: "Os pergaminhos já não são asas de Ícaro". Na crônica de 1859, Machado anteviu dificuldades para a imprensa. Chamou-as de "fases a atravessar". Soou otimista no arremate: "Cumpre vencer o caminho a todo o custo; no fim há sempre uma tenda para descansar, e uma relva para dormir".
A hiperdesinformação das redes revitalizou o papel da imprensa. Mas não há no horizonte tendas nem relvas. Vislumbra-se uma imensa trincheira. A guerra mal começou.
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