Bolsonaro ainda imita Trump, mas já não boia como o ídolo
O mal do imitador é que ele continua a imitar mesmo quando o plágio é desmascarado e deixa de surtir efeito. Bolsonaro atirou-se no mesmo magma espesso que engolfa Donald Trump. Esperneia da mesma maneira. O magnata americano diz sofrer uma "caça às bruxas". O capitão alega ser vítima de "perseguição política". A diferença é que Trump flutua no melado. Bolsonaro afunda.
Expurgados do poder pelo eleitorado, os dois tornaram-se colecionadores de processos judiciais. Na aparência, a situação de Trump é mais precária. Amarga quatro indiciamentos criminais. Coisa jamais vista em 234 anos no histórico dos ex-presidentes dos Estados Unidos.
Bolsonaro ainda percorre a conjuntura brasileira como um indiciamento esperando na fila para acontecer. Mas, diferentemente de Trump, que ostenta a condição de presidenciável com chances reais de prevalecer nas eleições de 2024, voltando a despachar na Casa Branca em 2025, o capitão tornou-se inelegível seis meses depois de deixar o Planalto. Foi banido das urnas pelo Tribunal Superior Eleitoral até 2030.
Trump foi indiciado pela primeira vez no último mês de março, em Nova York, num processo envolvendo o pagamento de suborno para ocultar um affair com uma atriz pornô. Três meses depois, sofreu novo indiciamento, dessa vez em âmbito federal, sob a acusação de roubar documentos ultra secretos e obstruir a Justiça.
Na última quinta-feira, sobreveio o indiciamento mais constrangedor e potencialmente mais ruinoso, no estado da Georgia. Ali, Trump é acusado de tentar fraudar a eleição em que foi batido por Joe Biden. Sua voz foi captada num diálogo telefônico vadio. Nele, Trump pede ao secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, para "encontrar" 11.780 votos a seu favor. Algo que reverteria fraudulentamente o resultado do pleito.
Além de indiciado, Trump foi submetido na Geórgia ao constrangimento de posar para sua primeira "mugshot", a fotografia de réu. Passou alguns minutos na cadeia. Foi liberado mediante o pagamento de fiança de US$ 200 mil, o equivalente a quase R$ 1 milhão.
Na sua excursão a caminho do inferno, Bolsonaro também já poderia ter sofrido indiciamentos em série. Material não falta. Entretanto, a Polícia Federal age com método. Intimou o investigado para o seu quinto interrogatório, na próxima quinta-feira. Os investigadores colecionam provas enquanto aguardam estrategicamente pela substituição de Augusto Aras. Expira em setembro o mandato do antiprocurador-geral da República que forneceu a Bolsonaro quatro anos de blindagem.
Ironicamente, o que separa o destino de Bolsonaro do de Trump são as peculiaridades da legislação e do Judiciário brasileiro. Faltam aos Estados Unidos uma Justiça Eleitoral e uma Lei da Ficha Limpa. Prever a condenação de Trump antes da próxima sucessão exigiria um exercício de quiromancia. Porém, as leis americanas autorizam Trump a manter sua candidatura presidencial mesmo na hipótese de ser condenado e preso. Pior: nada impede que Trump governe desde a cadeia caso venha a ser eleito.
De resto, os processos contra Trump correm em diferentes estados, cada um submetido às suas próprias regras. As encrencas que assediam Bolsonaro estão concentradas, sob protestos da defesa, no Supremo Tribunal Federal, nas mãos de Alexandre de Moraes.
Liberado para fazer campanha, Trump dobra todas as apostas. Transforma os indiciamentos em peças do seu marketing eleitoral. Capricha na pose de vítima e na difusão de mentiras. Espalhou pelo cristal líquido da internet até mesmo a foto de réu em que fez careta de mau ao ser fichado na Geórgia. Paradoxalmente, seu prestígio eleitoral sobe à medida em que sua reputação afunda.
Em movimento inverso, Bolsonaro modula o linguajar. De repente, começou a dar ouvidos aos aliados que o aconselham a levar a língua na coleira. Atormenta-se com a ascensão nas pesquisas do arquirrival Lula. Irrita-se com o deslizamento do centrão bolsonarista para dentro do governo petista. Inquieta-se com a prisão de ex-auxiliares. Revela em privado o receio de receber uma visita matinal dos rapazes da Polícia Federal.
Ressoam nos ouvidos do capitão os termos do voto de Alexandre de Moraes que fechou no TSE o placar de 5 a 2 pela inelegibilidade. Moraes soou visceral e premonitório. O algoz de Bolsonaro votou de olho no retrovisor. Rememorou uma sessão de 28 de outubro de 2021. Nela, o TSE livrou a chapa Bolsonaro-Mourão da cassação. Mas Moraes avisou na época o que ocorreria com os políticos que repetissem em 2022 o modelo de difusão de mentiras que caracterizou a campanha bolsonarista em 2018: "Irão para a cadeia".
Num prenúncio do que estava por vir, Moraes declarou que "a Justiça é cega, mas não é tola." Insinuou que Bolsonaro já não poderia alegar que desconhecia os riscos. O magistrado releu trecho do voto de 2018 diante das câmeras da TV Justiça: "Se houver repetição do que foi feito, o registro será cassado, e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentarem contra as eleições e a democracia no Brasil".
No poder, Bolsonaro seguiu as pegadas de Trump. Abriu nas redes sociais canais de comunicação direta com os eleitores, cultivou uma agenda paleolítica nos costumes, escorou-se no eleitorado religioso, ostentou uma retórica nacionalista, jogou no ventilador falsidades sobre o sistema eleitoral. Nos Estados Unidos, as mentiras desaguaram na invasão do Capitólio por hordas de fanatizados. No Brasil, desembocaram no quebra-quebra de 8 de janeiro.
Na Presidência, Bolsonaro declarou que o futuro lhe reservava três opções: a prisão, a morte ou a vitória. A maioria do eleitorado privou-o da vitória. O destino não lhe reservou a morte. Bolsonaro apressou-se em descartar a primeira alternativa: "Eu não vou ser preso". Conspiram contra a assertiva as evidências que recheiam os inquéritos sobre joias, fake news, milícias digitais, incitação ao golpe e falsificação de cartões de vacina.
Deixe seu comentário