Josias de Souza

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Opinião

A penúltima de Toffoli: o debate sobre a revisão da Lei da Anistia

No passado, o brasileiro perguntava: "Sabe a última do papagaio?" Os despachos incertos de um certo ministro do Supremo Tribunal Federal fizeram surgir uma indagação nova: "Sabe a penúltima do Dias Toffoli?"

Depois de anular multas bilionárias que a J&F e a antiga Odebrecht aceitaram pagar em acordos de leniência, Toffoli ensaia outra ousadia: deseja promover, ainda em 2024, uma audiência pública para rediscutir a Lei da Anistia.

A pretensão de Toffoli foi revelada num encontro com representantes do Instituto Vladimir Herzog, uma entidade batizada com o nome do jornalista assassinado pela ditadura em 1975, depois de ser moído numa sessão de tortura.

Na versão oficial do regime, Herzog enforcou-se na cela com um cinto do macacão de presidiário. O médico-legista Harry Shibata emitiu o laudo que sustentou a fraude.

Em 1978, a Justiça responsabilizou a União pela prisão ilegal, a sevícia e o assassinato do jornalista. Em 1996, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos reconheceu que Herzog foi assassinado no DOI-Codi paulista, concedendo indenização à família.

A Lei da Anistia perdoou os autores de "crimes políticos ou conexos" praticados entre 1961 e 1979, ano de sua promulgação. O arranjo possibilitou o regresso de opositores da ditadura exilados no estrangeiro. Mas passou uma borracha nas atrocidades praticadas nos porões do regime. Daí o desejo de revisão.

Inaugurada por iniciativa do PSOL em 2014, a ação que pede ao Supremo que reconheça a "inaplicabilidade" da Lei da Anistia passou a ser relatada por Dias Toffoli em 2021. Nesse ano, o Instituo Vladimir Herzog foi admitido no processo na condição de amicus curiae (amigo da Corte).

A entidade sustenta que a lei "assegura a impunidade dos crimes de lesa-humanidade cometidos por agentes da ditadura militar, e está ainda em absoluto desacordo com os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário".

O que transforma em piada a intenção de Toffoli de retirar da gaveta a ação contra a vigência da Lei da Anistia não é a oportunidade do gesto, mas o zigue-zague do ministro. Em 2018, três anos antes de se tornar relator da ação que permanece trancada sob sua escrivaninha, Toffoli torturou a lógica com uma tentativa de rescrever a história.

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Nessa época, Toffoli ocupava o trono de presidente do Supremo. Alçado à Corte por indicação de Lula, mantinha um relacionamento sedoso com o então presidente Bolsonaro, admirador orgulhoso do torturador Brilhante Ustra.

Numa palestra feita na USP, Toffoli surpreendeu a audiência ao proclamar que não houve golpe militar no Brasil. "Eu não me refiro mais nem a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964", declarou.

Na bica de completar aniversário de 60 anos, a ditadura militar inclui entre suas atrocidades, a cassação de três ministros do Supremo e a aposentadoria compulsória de outros dois. Nem a violência praticada contra as togas inibiu a tentativa de Toffoli de virar a página da história para trás.

Agora, impulsionado por um desejo irrefreável e ainda não correspondido de se reaproximar de Lula, Toffoli surfa a onda do inquérito sobre a tentativa de golpe patrocinada por Bolsonaro e a corrosão da imagem das Forças Armadas para ensaiar a revisão do seu revisionismo.

Toffoli destrava o debate sobre a Lei da Anistia num momento em que o colega Alexandre de Moraes proclama, sem rodeios: "A Polícia Federal aponta provas robustas de que os investigados concorreram para o processo de planejamento e execução de um golpe de Estado, que não se consumou por circunstâncias alheias às suas vontades".

A intentona do 8 de janeiro converteu-se num processo de rejuvenescimento do debate sobre os crimes de outrora, recobertos pelo manto diáfano da anistia. A reabertura da discussão, por tardia, tem uma relevância mais historiográfica do que criminal. Mas ganhou atualidade. Merecia um patrono mais qualificado e menos incoerente do que Dias Toffoli.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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