Josias de Souza

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Opinião

Indefeso, Bolsonaro prioriza a demonização do algoz Moraes

Bolsonaro abomina a realidade, mas sabe que é o único lugar onde um político investigado pode arrumar uma defesa decente. Percebendo-se indefeso, o capitão recorre à empulhação de atos como o deste domingo, em Copacabana.

Os quatro anos de sua Presidência caótica revelaram que há sempre duas razões para as estratégias que Bolsonaro adota: a declarada e a real. A concentração de poderes nas mãos de Alexandre de Moraes fornece material para a confusão.

No gogó, Bolsonaro mantém Moraes na alça de mira porque o Brasil está "perto de uma ditadura" e "o mundo toma conhecimento do quanto está ameaçada a nossa liberdade de expressão". No mundo real, o personagem assemelha-se a um náufrago criminal que agarra o jacaré imaginando que é um tronco.

Tridente e chifres

Na composição da fábula do afogado, Bolsonaro e seus operadores escoram-se numa regra importada da propaganda. Baseia-se na personalização. Com um rótulo bem definido, qualquer coisa pode ser vendida.

Mestre da maledicência, Bolsonaro aprendeu em três décadas de vivência política que o mal, como abstração, é difícil de ser enxergado. Mas basta dar ao mal um tridente e um par de chifres e o sujeito passa a ter um inimigo para o qual transferir suas culpas. O demônio do bolsonarismo é Moraes.

A estratégia de Bolsonaro está crivada de ironia. Em 2018, conquistou o Planalto surfando a Lava Jato. Ao acomodar Sergio Moro na sua equipe ministerial, ajudou a arruinar a operação, pavimentando a trilha de suspeição que levaria à anulação das sentenças e à ressurreição de Lula. Agora, tenta grudar em Moraes a logomarca do lavajatismo.

Xerife-Geral da República

O bolsonarismo se esfalfa para colar em Moraes rótulos que o Supremo atribuiu a Moro: um juiz superpoderoso, autoconvertido em Xerife-Geral da República, que concentra em seu gabinete processos de grande repercussão e instrumentaliza o Direito em busca de resultados.

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Nessa versão, Moraes mimetizaria os métodos de Moro. Obteve a delação do ex-ajudante de ordens Mauro Cid após mantê-lo preso por quatro meses. Como se desejasse produzir um novo delator, conserva atrás das grades desde agosto do ano passado, sem condenação, o ex-diretor bolsonarista da Polícia Rodoviária Federal Silvinei Vasques.

Na gênese da concentração de poderes nas mãos de Moraes está o inquérito sobre fake news. Foi aberto em 2019 pelo então presidente do Supremo, Dias Toffoli, à revelia da Procuradoria-Geral da República. Moraes foi escolhido relator sem sorteio.

Princípio do juiz natural

Sobrevieram outros inquéritos, como o que investiga os atos antidemocráticos e o que apura as perversões das milícias digitais. Em condições normais, seriam sorteados novos relatores. Mas considerou-se que os crimes sob apuração tinham conexão com o inquérito inaugural.

Desse modo, abriu-se uma brecha para que a defesa de Bolsonaro sustente a tese segundo a qual o Supremo subverte duplamente o princípio do juiz natural. Primeiro porque indeferiu recurso para que Bolsonaro, um ex-presidente sem foro privilegiado, fosse enviado à primeira instância.

Segundo porque o Supremo teria torturado suas próprias regras para manter nas mãos de Moraes todos os inquéritos que aproximam Bolsonaro da cadeia —da falsificação dos cartões de vacina à comercialização de joias da União, passando pelo mais grave: a tentativa de golpe que desaguou no 8 de janeiro.

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Mistificação messiânica

Do ponto de vista jurídico, a tática do bolsonarismo é de uma ineficácia hedionda. Não há falatório capaz de eliminar as culpas do investigado. Afora a delação de Mauro Cid, a responsabilidade criminal de Bolsonaro está escorada em sólidas provas materiais e testemunhais.

Sob o prisma político, eventos como o da Avenida Paulista, em fevereiro, e o de Copacabana, neste domingo, fornecem a um investigado metaforicamente jurado de morte a possibilidade de se comportar como se estivesse cheio de vida. Faltando-lhe uma defesa crível, Bolsonaro apela à mistificação messiânica que hipnotiza os seus devotos.

A presença da evangélica Michelle Bolsonaro e do pastor Silas Malafaia nos palanques não é casual. Servindo-se da oratória da dupla, o capitão como que transforma as suas ovelhas em adeptas de uma religião.

Devoção renitente

Potencializa-se uma devoção dogmática que estimula os fiéis do mito a aceitar todas as presunções da divindade presumida a seu próprio respeito. Em matéria criminal, isso inclui concordar com o dogma segundo o qual Bolsonaro tem uma missão na Terra de inspiração divina e, portanto, indiscutível.

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Um pedaço do bolsonarismo percebeu em 2022 que era possível fazer quase tudo por Jair Messias, exceto papel de bobo. Desvinculando-se da seita, esse naco do eleitorado preferiu preservar a democracia.

Os devotos renitentes são mais assustadores, porque não estão sendo cínicos. Eles acreditam mesmo que a autocanonização de Bolsonaro dá a ele o direito de desafiar não só a Justiça, mas o próprio bom senso.

Brincando de corda

Escorado na credulidade alheia, Bolsonaro joga com o tempo. Aposta que a evolução do calendário converterá a proteção da democracia, que dá à toga de Alexandre Moraes uma aparência de capa do super-homem, num assunto tão secundário quanto o combate à corrupção, que fez a fama pretérita de Sergio Moro.

Questionando a legitimidade de Moraes, Bolsonaro imagina que poderá livrar-se da inelegibilidade e da cadeia para a qual as provas o empurram esgrimindo questões processuais. Brinca de corda, esticando-a, sem se dar conta da natureza do nó que lhe roça o pescoço.

Proferidas na primeira instância, as sentenças de Moro foram tisnadas pela Vaza Jato e anuladas pela mesma Suprema Corte que julgará as ações penais que o procurador-geral Paulo Gonet se equipa para formular. Para salvar Bolsonaro, o Supremo precisaria anular a si mesmo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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