Josias de Souza

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Opinião

Carlos e Eduardo Bolsonaro viraram 'surfistas' do dilúvio

A hecatombe que se abateu sobre o Rio Grande do Sul produziu um curto-circuito no bolsonarismo. Conhecidos pelo negacionismo climático, o deputado federal Eduardo Bolsonaro e o vereador carioca Carlos Bolsonaro tornaram-se espécies de "surfistas" do dilúvio. Com duas semanas de atraso, desembarcaram na calamidade.

Dedicaram-se a produzir vídeos. As aparições de Eduardo e Carlos foram postadas nas redes sociais bolsonaristas, já inundadas de desinformação sobre as ações dos governos federal e estadual. Bolsonaro repostou a movimentação dos filhos nos seus perfis eletrônicos.

Autoconvertido em "vereador federal", Carlos deu as caras na cidade de Bento Gonçalves na quinta-feira (16). Levava a tiracolo o ex-chefe da Secretaria de Comunicação de Bolsonaro, Fabio Wajngarten. A dupla desfilou ao lado do prefeito do município, Diogo Segabinazzi Siqueira, tucano como o governador gaúcho Eduardo Leite.

Em vídeo repostado pelo pai, Carlos realçou a solidariedade dos voluntários. "O trabalho dos civis está sendo fundamental para esse primeiro momento de alinhamento e de entendimento do que está acontecendo", disse. O "entendimento" de Carlos exclui as reações institucionais à crise gaúcha.

Na véspera, Lula realizara sua terceira visita ao Rio Grande do Sul. Anunciara, em São Leopoldo, medidas de socorro direto às vítimas das enchentes. Entre elas um Pix de R$ 5,1 mil a cerca de 240 mil famílias e a promessa de prover moradia a 100% dos desabrigados que não terão como retornar às suas casas.

O interesse súbito de Carlos pelo suplício dos gaúchos contrasta com seu tradicional descaso pela emergência climática. Em julho de 2019, em meio a uma onda de frio que derrubou as temperaturas no Sul e no Sudeste do Brasil, Carluxo postou no ex-Twitter: "Só por curiosidade: quando está quente a culpa é sempre do possível aquecimento global e quando está frio fora do normal como é que se chama?"

Em dobradinha com o irmão, Eduardo Bolsonaro deixou-se filmar passeando de jet ski sobre as águas que inundaram a cidade gaúcha de Eldorado do Sul. Antes, bateu bumbo nas redes sociais para alardear que destinara uma de suas emendas orçamentárias para o Rio Grande do Sul. Coisa de R$ 1 milhão.

A antiga aversão de Eduardo aos alertas científicos sobre as variações climáticas revela que o barulho que produz no Rio Grande do Sul é cenográfico. Seu tambor é vazio por dentro.

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Num prenúncio do que estava por vir depois da posse do pai no Planalto, Eduardo propagou em pleno ano eleitoral de 2018 um vídeo tóxico. Nele, o filho número 3 de Bolsonaro apoiou a decisão de Donald Trump, então inquilino da Casa Branca, de retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris.

Em visita ao país do ídolo Trump, rodeado de neve, Eduardo indagou: "Que aquecimento global é esse?". Ecoando um negacionismo encontradiço na ultradireita, disse coisas assim: "Não deixe que o discurso, principalmente dos globalistas, matéria em cima de matéria, jogando essa mentira para vocês, que ela reste sedimentada como verdade".

Bolsonaro ainda estava internado em São Paulo, para tratar de uma infecção bacteriana, quando os filhos chegaram ao Rio Grande do Sul. Recebeu alta hospitalar na sexta-feira, após 12 dias no estaleiro. Antes, postou a movimentação de Carlos e Eduardo.

Alheio à cobertura massiva realizada pela imprensa profissional, Bolsonaro insinuou que Carlos iluminava em Bento Gonçalves cenas sonegadas ao país por uma legião de repórteres. Nessa versão, Carluxo estaria "revelando as peculiaridades dos problemas locais, expondo situação catastrófica do Vale, algo pouco exposto na mídia convencional, que está focada na região de Porto Alegre, Lajeado e Canoas".

Bolsonaro esforçou-se também para realçar a hipotética solidariedade de Eduardo. "Meu outro filho, o deputado federal Eduardo, remanejou parte de suas emendas parlamentares para ajuda na região e outras áreas afetadas nesta enchente histórica que destruiu todo o estado em questão. Seguimos acreditando e fazendo nossa parte na união do nosso amado Brasil."

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Nos quatro anos de sua Presidência, Bolsonaro fez a sua "parte" na contramão do receituário da ciência. Em 2019, primeiro ano do capitão no Planalto, o Brasil deveria ter sediado a COP-25, Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas. Uma recusa de Bolsonaro levou o encontro para Madri.

Em dezembro de 2019, nas pegadas da COP-25, Bolsonaro escancarou seu negacionismo climático no cercadinho do Alvorada. Referiu-se à pressão internacional por medidas contra a emergência climática como mero "jogo comercial". Desdenhou do encontro da ONU: "Por que eu não aceitei COP-25 no Brasil. Eu não aceitei, eu que decidi. Estariam fazendo aqui um Carnaval no Brasil agora."

Nessa época, o ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro era Ricardo Salles, mais preocupado em "passar a boiada" do que em deter o crime ambiental. O chanceler era Ernesto Araújo, um negacionista de mostruário. Em setembro de 2019, o então chefe do Itamaraty expôs o Brasil ao vexame em palestra nos Estados Unidos, na Heritage Foundation, uma entidade conservadora de viés trumpista.

Discursando por uma hora, Ernesto Araújo disse que Bolsonaro e Trump pegavam em lanças contra o sistema internacional, liderando uma "insurgência universal contra a bobagem". Chamou de "climatismo" os esforços contra as transformações do clima. Duvidou do aquecimento global. Atribuiu a preocupação dos líderes globais não à sensatez, mais a uma "hipnose coletiva", um "apocalipse zumbi".

Se tragédias como a do Rio Grande do Sul servem para alguma coisa é para demonstrar que, embora pessoas como Bolsonaro, seus filhos e seus cúmplices odeiem os fatos, a realidade ainda é o único lugar onde é possível obter medidas de prevenção contra os desastres climáticos.

Uma criança de cinco anos, com a mente ainda despolarizada, é capaz e perceber que gente como Bolsonaro, Eduardo e Carlos confunde amnésia com consciência limpa. A ex-primeira família aposta no tumulto. Quem não quiser fazer papel de bobo precisa se dar conta de que pessoas que nunca levaram em conta a realidade não merecem ser levadas em conta.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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