Emparedado por Maduro, Lula exibe uma nudez democrática
Pior do que a nudez inesperada é o nu que não causa espanto. Ao avalizar nesta semana a fraudulenta reeleição de Nicolás Maduro, o Tribunal Supremo de Justiça da Venezuela impôs a Lula o pior tipo de impudor: a indecência que ninguém pediu para ver, embora todos já intuíssem que o presidente brasileiro ficaria, por assim dizer, com o derrière exposto na janela.
Na noita desta sexta-feira, Lula conversou por telefone com o presidente da Colômbia, Gustavo Petro. Ambos buscavam uma saída negociada para a crise venezuelana. Intimados pelas circunstâncias a se reposionar, ainda hesitam em reconhecer o óbvio. Combinaram uma nova conversa para a próxima semana.
A articulação incluía também o presidente mexicano Andrés López Obrador. Entretanto, acometido pela síndrome do que estava por vir, Obrador retirou-se da negociação. Livrou-se preventivamenre do constrangimento de admitir em público a obviedade de que a Venezuela tornou-se uma ditadura clássica.
O constrangimento é maior para Lula. Na semana passada, tropeçando no óbvio, Lula declarou que "a Venezuela vive um regime muito desagradável". Admitiu que Maduro adquiriu um "viés autoritário". Mas sustentou que o país vizinho "ainda não é uma ditadura".
Acorrentado a vícios ideológicos do passado, Lula demora a se dar conta de que, aplicando-se os seus conceitos à conjuntura brasileira, Bolsonaro, admirador confesso da ditadura militar, não seria senão um personagem ligeiramente antidemocrático. O 8 de janeiro e o golpe falhado, que previa a anulação da vitória do próprio Lula, seriam meras contingências aceitáveis.
Lula ainda defendia a hipótese de superação do caos venezuelano por meio da realização de uma utópica nova eleição. A transposição da fórmula para a realidade brasileira conduziria à suposição absurda de que Lula e o PT aceitariam graciosamente a submissão do resultado das urnas de 2022 a um tira-teima, uma espécie de VAR eleitoral.
No calor da fraude da autoproclamação de sua reeleição, Maduro prometera ao assessor internacional de Lula, Celso Amorim, que divulgaria as atas com os resultados individualizados das seções eleitorais da Venezuela em "dois ou três dias". Com a rapidez de um raio, o ditador voltou atrás.
Maduro alegou que um hipotético ataque hacker mergulara a Venezuela numa "batalha cibernética nunca antes vista". Transferiu as atas ocultas da Comissão Nacional Eleitoral, espécie de TSE venezuelano, sob domínio chavista, para o manietado Tribunal Supremo de Justiça.
Conforme o mundo esperava, a Corte Suprema da Venezuela, outra instância submetida às conveniências do ditador, avalizou a fraude. Pior: proibiu a divulgação das atas eleitorais. Muito pior: preparou o terreno para a prisão do rival oposicionista Edmundo González e de de sua madrinha política María Corina.
Emparedada, a diplomacia brasileira evolui rapidamente do constrangimento para o vexame. Não é que Lula seja um observador inerte da derrocada do regime venezuelano. O problema é que, no limite, ele é corresponsável pela encrenca, pois sempre contemporizou com o depravação do chavismo.
Em 2013, quando sua criatura Dilma Rousseff era inquilina do Planalto, Lula gravou um vídeo para uma campanha de Maduro. Na peça, dizia que a gestão do ditador repesentava "a Venezuela que Chávez sonhou". No ano passado, desenrolou o tapete vermelho para recepcionar Maduro em Brasília.
Lula defendeu a reinserção do vizinho no Mercosul. Disse que a ditadura venezuelana não passava de "narrativa" ficcional. Sustentou que a democracia é um conceito "relativo". Deu no que está dando.
Considerando-se que Maduro produz o maior flagelo humanitário da história do continente, aterrorizando os venezuelanos com a morte de manifestantes, a prisão indiscriminada de patrícios sublevados e a potencialização da diáspora venezuelana, a consequência da leniência do Planalto é politicamente devastadora.
Num instante em que metade da sociedade brasileira respira aliviada por ter conseguido livrar o Brasil do projeto ditatorial de Bolsonaro pela margem mixuruca de 1,8 ponto percentual dos votos, Lula converte a derrocada de Maduro num processo de erosão da sua popularidade. É como se o xamã do petismo disputasse com o capitão golpista o posto de líder da oposição.
Na teoria, o Itamaraty mantém o compromisso de não reconhecer a vitória de Maduro enquanto não vierem à luz as atas da eleição de 28 de julho. Na prática, submetido à contingência de que o rompimento de relações com a Venezuela não convém ao Brasil, a diplomacia brasileira reconhece tacitamente a reeleição fraudulenta do ditador, condenando-se a conviver com ele.
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