Debate parecia disputa por uma cadeira no céu, não na prefeitura
Decepcionou-se quem sintonizou no debate realizado pela TV Record imaginando que assistiria a uma nova rodada de pancadaria. Não houve cadeirada nem soco. Na emissora do bispo Edir Macedo, da Igreja Universal do Reino de Deus, alguns candidatos soaram como se disputassem uma poltrona no céu, não o trono de prefeito de São Paulo —uma cidade com ares de inferno irrespirável.
Afora as frases de efeito duvidoso e a carga religiosa, o nono debate da temporada teve três destaques:
1) De olho no eleitor indeciso, Pablo Marçal levou a incivilidade na coleira. Está atento às pesquisas que diz desprezar. Com atraso, tenta seduzir os não convertidos. Segundo o Datafolha, há na praça 32% de votos que namoram a ideia de trocar de candidato.
2) Contra o voto útil, Tabata Amaral fustigou Guilherme Boulos com uma menção à volatilidade de suas posições em relação a temas como descriminalização das drogas, aborto e ditadura na Venezuela.
3) Alvo preferencial da noite, Ricardo Nunes não fez gol de placa nem gol contra. Como um drone guiado pelo controle remoto de sua equipe de marketing, o prefeito jogou pelo empate. Driblando os esqueletos que tem no armário, deu à disputa ares de um plebiscito para decidir se o incerto conhecido deve continuar na prefeitura ou dar lugar a uma certa dúvida.
Há nas poucas propostas mencionadas por Marçal uma mistura de pirlimpimpim com abracadabra. Ele oferece a melhor encenação, não o melhor programa de governo. Antes, fustigava José Luiz Datena. Na noite deste sábado, usou quem lhe deu uma cadeirada como escada para chegar à jugular de Nunes. Trava com o prefeito uma renhida disputa pelo voto conservador.
Cavalgando uma crítica de Datena ao descaso da prefeitura com as pessoas que passam fome em São Paulo, Marçal disse ter tomado distância da geladeira. "Eu me propus a fazer um jejum. Esse jejum é pelo povo."
Estatisticamente empatado com Nunes na preferência dos evangélicos, Marçal subiu no púlpito. "Estou só tomando água, desde segunda-feira, meio-dia. E vou entregar na próxima segunda-feira, sete dias, que é o número da plenitude. Para você entender o quanto estou levando isso a sério. Estou buscando em Deus soluções para esclarecer tanta mentira em relação à minha pessoa, para atingir seu coração."
Minutos antes, Marçal havia eletrificado o estúdio ao arrastar Nunes para uma troca de farpas pouco cristãs. Esfregou na cara do rival a acusação de envolvimento na máfia das creches. "Existe pagamento em seu nome e de familiares", atacou. E Nunes: "Quem fugiu da polícia foi você, sob acusação de participar da maior quadrilha [de roubo cibernético de contas bancárias]. Você é um mentiroso contumaz. Foi condenado em 22 processos na Justiça Eleitoral."
Nas considerações finais, Ricardo Nunes migrou da delegacia de polícia para a igreja. Encostou sua retórica no Sermão da Montanha. Ecoou Jesus Cristo: "Bem-aventurados os humildes de espírito, porque deles é o reino dos céus". À espera de que Deus prove sua existência nas urnas, o prefeito escora seu andor sobre os ombros de Tarcísio de Freitas. "A humildade é algo fundamental, eu sei que tenho muita coisa para fazer. Mas já estamos fazendo bastante coisa, junto com o governador Tarcísio."
Até Tabata Amaral, que se notabiliza pela exposição de propostas para a cidade, cavou uma oportunidade para injetar religiosidade na sua prosa: "Se estou aqui hoje é porque a igreja salvou nossas vidas e a educação transformou minha vida para sempre. Falo sim de igreja, apesar do preconceito que muita gente tem. Na periferia quando você não tem espaço seguro, quando você não tem lazer, quando falta comida na sua casa é a igreja que lhe acode."
Não dispondo de conexões com o divino, Boulos tentou compensar sua debilidade junto ao eleitorado da periferia vinculando-se a Lula e Marta Suplicy. De resto, viu-se compelido a negar a tese dos adversários segundo a qual sua biografia estaria apinhada de pecados.
Nunes submeteu Boulos aos ataques de praxe —do pedido de arquivamento da rachadinha de André Janones à pecha de invasor de propriedades. Marina Helena jogou no ventilador o trecho do estatuto do PSOL que defenderia a "expropriação de propriedades."
O problema de debater vícios e virtudes sob atmosfera religiosa está na inconveniência da mistura. Juntando-se limão com cachaça em dia de feijoada, tem-se uma caipirinha. Misturando-se religião e política num debate entre aspirantes à Prefeitura de São Paulo, tem-se apenas uma grande empulhação.
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