Defensoria pede Força Nacional para conter violência contra indígenas no MS
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Por Spensy Pimentel, especial para a coluna*
A Defensoria Pública da União, por meio de sua Defensoria Regional de Direitos Humanos em Mato Grosso do Sul, pediu ao governo do Estado, nesta sexta (10), que solicite policiais da Força Nacional de Segurança Pública para conter conflitos no entorno da Reserva Indígena de Dourados - distante 233 km da capital Campo Grande. Três indígenas e um agente de segurança privado ficaram feridos após dois dias de violência na semana passada, segundo informe da Defensoria. Uma criança de 12 anos perdeu dedos da mão esquerda após manipular um artefato explosivo deixado em uma aldeia após os ataques.
Os indígenas vivem em áreas reivindicadas como terra de ocupação tradicional, mas que ainda não contam com estudo de identificação realizado pela Funai. "Não restam dúvidas", anota o ofício da DPU, "que o cenário é de intenso conflito". Para a instituição, "há riscos de novos atos violentos que poderão vitimar crianças e idosos indígenas".
A carta da DPU foi resultado de uma missão que levou representantes de 18 entidades da sociedade civil ao acampamento Nhu Verá, epicentro dos conflitos. O pedido de presença da Força Nacional está relacionado à constatação, nessa visita, de que indígenas estão sendo alvo de disparos de armas de fogo.
Na segunda-feira (6), o secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Luiz Antonio Nabhan Garcia, e o presidente interino da Funai (Fundação Nacional do Índio), Alcir Amaral Teixeira, estiveram em Dourados e se reuniram com proprietários de terra e seus representantes.
"Sabemos infelizmente, que muitos índios estão sendo liderados por pessoas que buscam essa situação de conflito", afirmou o secretário em registro de Marta Ferreira, do site Campo Grande News.
A Reserva de Dourados tem se destacado como uma das áreas indígenas mais problemáticas do país nas últimas décadas. Com 3,5 mil hectares demarcados em 1917, hoje abriga quase 20 mil pessoas, segundo números dos moradores locais. Um barril de pólvora, com altos índices de violência, suicídios, pobreza e uma grande revolta dos indígenas, cercados da riqueza que o agronegócio construiu, com financiamento público, sobre as terras que lhes foram tomadas pelo Estado brasileiro ao longo do século 20.
Ataques a indígenas
Os ataques aos acampamentos em Dourados, nos últimos meses, criaram um capítulo à parte na já longa história envolvendo os Guarani-Kaiowá. Embates que costumavam ser tipicamente rurais, nos últimos 35 anos, agora lembram cada vez mais as cenas de despejos e reintegrações de posse que volta e meia assolam grupos de sem-teto em megacidades como São Paulo.
Em cenas amplamente disseminadas pelas redes sociais na semana passada, barracos de lona destruídos, carros de polícia nos acampamentos, pessoas atingidas por balas de borracha, projéteis disparados. Desta vez a repercussão foi mais ampla, mas o fato é que, há mais de um ano, os ataques são quase ininterruptos, segundo os registros de entidades indigenistas.
Os seguranças de sítios e fazendas próximas à reserva - chamados de pistoleiros pelos indígenas - teoricamente trabalham com os chamados "armamentos não-letais". Na prática, um jovem de 14 anos morreu, em 2019, após, segundo o movimento indígena, receber 18 tiros dessas armas, outro pode perder a visão em função dos disparos, e uma das bombas de "efeito moral" abandonadas no local, na semana passada, arrancou os dedos da mão de uma criança.
Quem realmente conhece os acampamentos que têm sido alvo de ataques sabe que muitos dos moradores estão ali por puro desespero. Há mães solteiras, idosos, jovens casais, muitas crianças, muitos comendo mal, passando calor e frio, bebendo água contaminada - até mesmo gente despejada de suas casas dentro da reserva, pois hoje muitas das relações ali são tipicamente urbanas, permeadas pelo dinheiro.
Estrangulamento
Com acesso a empregos, comércio, benefícios sociais, cresceu exponencialmente a desigualdade que já existia por questões étnicas.
Há pessoas de três etnias em Dourados: Kaiowá, Guarani e Terena, além de muitos mestiços, devido a casamentos com não indígenas. Os grupos chegaram ao local em distintos momentos da história, muitas vezes contra sua vontade, despejados de suas áreas originais.
Existem famílias endividadas no comércio - sempre alvo de denúncias por retenção de cartões e práticas extorsivas; há pessoas com problema de dependência química; vítimas dos mais variados tipos de violência; egressos do sistema prisional e familiares de presos indígenas; gente que, às vezes, não tem acesso aos direitos mais básicos, como benefícios sociais, por falta de condições mínimas, como documentação pessoal. Os problemas são muitos, a atenção é mínima.
A construção de um anel rodoviário em Dourados gerou um vetor de expansão da cidade que vem deixando cada vez mais estreita a faixa entre a reserva e os bairros de Dourados.
A área entre os limites da reserva e o rodoanel virou uma panela de pressão. A demanda indígena por terra - associada à aspiração por uma vida autônoma que recupere a agricultura tradicional e outros elementos das culturas indígenas - ali, adquire feições inusitadas. Anos atrás, um vereador indígena eleito na cidade tinha como propostas de atuação a criação de creches e de conjuntos habitacionais para os indígenas - reivindicações tipicamente urbanas.
Mad Max Sul-matogrossense
Quem quiser ter uma ideia do visual pode assistir ao clipe Koangagua, do grupo de rap indígena Bro MC's. Parte do vídeo é ambientada no acampamento Boquerón, e as crianças indígenas mascaradas empunham armas de brinquedo enquanto mexem a cabeça ouvindo rap, sentadas sobre carcaças de automóveis que são abandonadas na área. A notícia recente sobre um trator blindado (apelidado pelos indígenas de "caveirão") que vem sendo utilizado pelos fazendeiros dos arredores para supostamente prevenir ataques dos indígenas completa o cenário à la Mad Max.
Tudo isso acontece a poucas centenas de metros de condomínios de luxo, habitados pelos novos ricos do agronegócio. Como em São Paulo ou Rio, miséria e riqueza estão muito próximas.
Em Dourados, ficam evidentes os reflexos do processo de "condominiarização" do Brasil: elites cada vez mais segregadas em relação à cidade e o território, separadas dos problemas sociais pelos altos muros dos condomínios fechados, como tem pontuado o psicanalista Christian Dunker em suas análises. Conectadas ao mundo pela internet, estradas e aeroportos, essas pessoas ignoram quase tudo sobre o que se passa logo ali ao lado de suas casas, debaixo de seus narizes.
Nos anos 80, ficou famoso o poema "Genocíndio", de um artista local, Emmanuel Marinho. Suas estrofes eram pontuadas pela frase "Tem pão velho?", frequentemente ouvida nos portões das casas dos moradores de Dourados. No tempo em que não existiam aposentadoria rural ou Bolsa Família, famílias indígenas se deslocavam às dezenas até a cidade para pedir auxílio. Hoje, a elite de Dourados cerca-se de muros cada vez mais altos para impedir que até mesmo essas palavras os indígenas possam dirigir-lhes.
"Tem pão velho?
Não, criança/Tem o pão que o diabo amassou/Tem sangue de índios nas ruas/E quando é noite/A lua geme aflita/Por seus filhos mortos.
Tem pão velho?"
(*) Spensy Pimentel, jornalista e doutor em antropologia pela USP, é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo. É especialista na questão indígena no Mato Grosso do Sul, tendo realizado pesquisas e reportagens na região nos últimos 20 anos.