Lei derrota fanatismo religioso ao proteger vítima de estupro. Por enquanto
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Por Eloísa Machado e João Paulo Dorini*
Foi necessária uma ordem judicial para fazer valer o direito ao aborto, previsto no Código Penal desde 1940, para o dramático caso de uma menina de dez anos seguidamente vítima de estupros pelo tio.
Precisar de uma autorização judicial para fazer valer uma política pública e um direito assegurado na lei é, por si só, um absurdo. Mas a decisão judicial veio em tempo e, aos trancos e barrancos, o direito resistiu.
Mesmo com ordem judicial, fanáticos religiosos tentaram impedir a realização do procedimento de saúde. Convocados por redes sociais, amontoaram-se na porta do hospital, chamando a menina vítima de estupro e o médico de assassinos. A ordem e o direito que ela preservava resistiram e a tragédia que pairou sobre a menina vítima de estupro não se tornou ainda maior.
Este é só um dos exemplos de inúmeras tentativas de avanço do fundamentalismo religioso sobre as leis e as instituições. Há propostas de emenda à Constituição brasileira para, por exemplo, declarar que todo poder emana de Deus (PEC 12/2015) e proibir o ensino de temas que contrariem a visão religiosa dos pais (PEC 435/2015).
Aliás, o ensino tem sido vítima constante de ataques de fundamentalistas religiosos: leis que impedem educação sexual e o debate sobre a discriminação de gênero nas escolas têm sido, uma por uma, derrotadas no Supremo Tribunal Federal.
Há leis que tentam transformam a bíblia em lei. Isso, lei mesmo.
Outras tentativas de influência de grupos fanáticos religiosos, entretanto, não são tão explícitas, ainda que igualmente danosas. Esse movimento tem sido perceptível, por exemplo, em resoluções de conselhos regionais e federal de medicina, sempre hesitantes quando se trata de afirmar direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.
Para exemplificar, uma resolução do Conselho Federal de Medicina de 2019 negava às mulheres gestantes o direito de recusa terapêutica, ou seja, impedia às mulheres de decidir, por exemplo, quais procedimentos poderiam adotar ou não no momento do parto. Por trás de referida resolução estava a ideia de que o feto deve se sobrepor à vida da mulher. Simples assim.
Também para esses casos, felizmente, o direito resiste.
Uma ação judicial da Defensoria Pública da União e da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, questionando a legalidade da resolução, teve liminar deferida pela Justiça Federal, suspendendo diversos artigos que de algum modo limitavam os direitos de escolha das pacientes sobre o tratamento a ser adotado após seu consentimento informado, principalmente o de recusa terapêutica.
Estava em jogo, também, uma garantia elementar na relação médico-paciente, o dever de sigilo e confidencialidade. A resolução do CFM permitia que o médico comunicasse autoridades policiais e investigativas caso o representante legal de um menor se recusasse a permitir um dado tratamento.
A resolução impressiona pelo método. Ao definir que a recusa terapêutica poderia configurar abuso de direito (conceito que cabe ao Legislativo definir abstratamente ou ao Judiciário definir no caso concreto) contra terceiro, inclusive em relação ao feto, a norma agora suspensa permitia que médicos simplesmente ignorassem o exercício do direito à interrupção da gravidez nos casos em que a lei assim permite.
Casos que deveriam ser objeto de políticas públicas permanentes e eficazes para a garantia do direito à saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Era fundamentalismo religioso escondido sob a forma de resolução.
Tivesse sido aplicada a resolução, não só a menina de dez anos de idade, vítima de estupro, teria seu direito negado, o que colocaria em risco sua vida, como seus representantes ainda poderiam estar sujeitos a investigações e criminalizações. Ou seja, o caso da menina, mesmo tão repulsivo, poderia ser ainda pior.
Não se pode ignorar o efeito perverso de regulamentações que, influenciadas por fundamentalismos anticiência e sob o pretexto de protegerem vítimas, abrem caminho para que elas sejam expostas publicamente, investigadas, criminalizadas, marcando a fogo justamente quem deveria ser protegida, e pavimentando o silêncio e a impunidade.
A decisão judicial que suspendeu parte da resolução restaura a lei e é, nesse ponto, bastante clara: "somente o risco efetivo à vida ou saúde do paciente deve ser considerada como justificativa legal para afastar a recusa ou escolha terapêutica do paciente".
Reproduzir fundamentalismos religiosos, seja de maneira clara ou por subterfúgios, seja em códigos e leis ou em regulamentações obscuras, não só viola a própria liberdade religiosa - que só sobrevive em um Estado laico - como também corrói o Estado de Direito.
Ao invés de lei e políticas públicas, damos lugar à perseguição, à exclusão e à violência.
O direito, felizmente, ainda resiste.
(*) Eloísa Machado é professora da FGV Direito SP e membro do Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos; João Paulo Dorini, defensor público federal, é defensor regional de direitos humanos em São Paulo.