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Leonardo Sakamoto

STF julga ação que pode extinguir a "lista suja" do trabalho escravo

Operação de fiscalização resgata trabalhadores da escravidão em fazenda de gado no Sul do Pará - Leonardo Sakamoto
Operação de fiscalização resgata trabalhadores da escravidão em fazenda de gado no Sul do Pará Imagem: Leonardo Sakamoto

Colunista do UOL

03/09/2020 12h17

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O julgamento de um pedido da Associação Brasileira das Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc) para que a portaria do governo federal que mantém a "lista suja" do trabalho escravo seja declarada inconstitucional está marcado para esta sexta (4) na agenda do Supremo Tribunal Federal. O cadastro de empregadores flagrados com mão de obra análoga à de escravo divulga à sociedade, desde 2003, os nomes de quem foi responsabilizado pelo poder público por esse tipo de exploração.

De acordo com dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, do Ministério da Economia, mais de 55 mil pessoas foram resgatadas da escravidão contemporânea pelo governo brasileiro desde 1995, quando o país criou seu sistema de combate a esse crime.

O relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 509, ministro Marco Aurélio Mello, negou uma liminar solicitada pela Abrainc em janeiro de 2018 e levou o caso ao plenário. O julgamento será virtual, ou seja, com cada ministro enviando seu voto.

A Abrainc, que reúne 46 empresas do setor e conta em seu conselho com representantes da Setin, Tegra, Tenda, Cury, Cyrela, Casa Viva, Ezetec e MRV, considera a lista um instrumento de punição precoce e ilegal de empresas autuadas por órgãos federais. A entidade também defende que a regra instituída pela portaria só poderia ter sido criada por lei e, portanto, o Poder Executivo teria usurpado função do Poder Legislativo ao instituí-la.

Instada a se pronunciar no processo, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, deu parecer pela improcedência do pedido, defendendo a manutenção e divulgação do cadastro. Para ela, a relação é um importante instrumento de "transparência" e de "acesso à informação" sobre ações governamentais - no caso, a ação de libertações de trabalhadores.

"Lista suja" é considerada pela ONU referência global de combate à escravidão

A "lista suja" existe desde novembro de 2003 e, por regra, é atualizada a cada seis meses pelo Ministério da Economia, que herdou a tarefa do Ministério do Trabalho. Prevista em portaria interministerial, ela inclui nomes após o exercício do direito de defesa administrativa em primeira e segunda instâncias.

Os empregadores, pessoas físicas e jurídicas, permanecem listados, a princípio, por dois anos. Eles podem optar, contudo, por firmar um acordo com o governo e serem suspensos da relação. Para tanto, precisam se comprometer a cumprir uma série de exigências trabalhistas e sociais.

Apesar da portaria que prevê a lista não obrigar a um bloqueio comercial ou financeiro, ela tem sido usada por empresas brasileiras e estrangeiras para seu gerenciamento de risco. O que tornou o instrumento um exemplo global no combate ao trabalho escravo, reconhecido pelas Nações Unidas.

Em seu parecer, a Procuradoria-Geral da República afirmou que a portaria nada mais é do que um instrumento administrativo para dar concretude aos princípios constitucionais da publicidade, da transparência da ação governamental e do acesso à informação.

"Por meio dela, diante da gravidade das práticas que reduzem trabalhadores a condições análogas à de escravo, os ministros de Estado competentes deliberaram consolidar ações estatais e divulgá-las para conhecimento público, dado o interesse coletivo e geral das informações, como prevê a Carta Magna", disse Dodge.

Para a então procuradora-geral da República, "a publicidade dos atos administrativos, ressalvados os casos previstos em lei, é imperativo da ordem constitucional e do Estado Democrático de Direito, e qualquer prejuízo porventura sofrido por empregadores cadastrados nos moldes da Portaria Interministerial 4/2016 [que organiza a lista] - que não prevê nenhuma sanção - decorre puramente da reprovabilidade social da conduta de quem superexplorou e coisificou trabalhadores, negando-lhes dignidade".

Em outras palavras, a "lista suja" não prevê punição por parte do poder público. Se ela ocorre, é porque empresas, bancos e a sociedade rejeitam quem se utilizou de trabalho escravo.

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Incorporadoras já conseguiram suspender a "lista suja" em 2014

A mesma associação já tinha conseguido suspender a "lista suja" em dezembro de 2014, em meio ao plantão do recesso de final de ano de 2014, por decisão do então presidente, Ricardo Lewandowski.

A suspensão foi retirada em maio de 2016 pela ministra Cármen Lúcia após o então Ministério do Trabalho publicar novas regras de entrada e saída do cadastro, atendendo a demandas do setor empresarial. Porém, o governo Michel Temer manteve a publicação da relação congelada até perder uma batalha judicial para o Ministério Público do Trabalho. Com isso, a "lista suja" voltou a ser divulgada apenas em março de 2017.

Enquanto a relação permaneceu suspensa, para garantir que o fornecimento de informações não fosse interrompido, a imprensa, a sociedade civil e o setor empresarial passaram a demandar o conteúdo da "lista suja" através da Lei de Acesso à Informação. Com isso, foi criada uma espécie de "Lista de Transparência", que passou a ser usada por bancos e frigoríficos, entre outros, para o desenvolvimento de suas políticas de responsabilidade social empresarial e para due diligence em suas cadeias de valor.

Sete meses depois, em outubro, o Ministério do Trabalho publicou uma polêmica portaria que fornecia novas regras para fiscalização de condições análogas às de escravo, o que alterava a aplicação do conceito desse crime (previsto no artigo 149 do Código Penal) e dificultava a libertação de pessoas.

A mesma portaria (1129/2017) também reduzia a transparência da "lista suja", tornando sua atualização dependente de uma decisão política do ministro e não mais da área técnica da fiscalização. Além de condicionar a validação da operação de fiscalização à presença de forças policiais, o que não é necessário hoje.

Na época, a tentativa de dificultar a libertação de trabalhadores foi vista como moeda de troca entre o governo federal e parlamentares ligados a grupos empresariais para barrar a denúncia por organização criminosa e obstrução de Justiça contra Michel Temer na Câmara dos Deputados.

Em resposta a uma Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pelo partido Rede, a ministra Rosa Weber concedeu uma liminar suspendendo os efeitos da portaria ainda em outubro. E, em um de seus últimos atos como ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira editou uma nova portaria que trata sobre o conceito de trabalho em condições análogas à de escravo e da "lista suja". A portaria 1293/2017, de dezembro, substituiu a anterior, voltando atrás na maioria das mudanças.

A PGR também apresentou ao Supremo parecer favorável à Ação Direta de Inconstitucionalidade movida pela Rede contra a portaria 1129/2017. Defende que a edição da portaria 1293/2017 revogou a anterior - que, segundo a instituição, ofende a dignidade humana.

Trabalho escravo no Brasil hoje

A Lei Áurea aboliu a escravidão formal em maio de 1888, o que significou que o Estado brasileiro não mais reconhece que alguém seja dono de outra pessoa. Persistiram, contudo, situações que transformam pessoas em instrumentos descartáveis de trabalho, negando a elas sua liberdade e dignidade. Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

As mais de 55 mil pessoas foram em sua maioria resgatadas por grupos especiais de fiscalização móvel, coordenados por auditores fiscais do trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, entre outras instituições. Ou por equipes ligadas às Superintendências Regional do Trabalho nos estados, que também contam com o apoio das Polícias Civil, Militar e Ambiental.

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na construção civil, em oficinas de costura, em bordeis, entre outras atividades.