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Leonardo Sakamoto

Com vacina à vista, STF e STJ tentam furar fila e estar acima dos mortais

Colunista do UOL

23/12/2020 04h49

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O presidente da República já avisou que não haverá doses suficientes para imunizar todos os brasileiros para a covid-19 em 2021. Claro que não confessou que a culpa por isso é de sua própria incompetência. É o que temos para hoje. Afinal, há um Messias no poder que diz não fazer milagres, mas também não sabe governar.

Diante do quadro de escassez, o que fizeram o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça? Consultaram a Fundação Oswaldo Cruz, instituição responsável por fabricar a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca no país, para saber se era possível "reservar" doses do imunizante para seus ministros e servidores.

Tal qual Júpiter e Saturno no céu, por aqui temos a conjunção de dois grandes mundos criando um bizarro espetáculo.

A falta de credibilidade do governo Bolsonaro, que apresentou um plano nacional de imunização frágil e foi omisso no processo de aquisição de vacinas, encontra-se com o sentimento de uma parte do Poder Judiciário que acredita que todos são iguais perante à lei - menos magistrados e suas equipes, que estão acima dela.

De acordo com reportagem de Matheus Teixeira, da Folha de S.Paulo, o STF afirmou à Fiocruz que seu pedido de reserva tinha os objetivos de imunizar os seus e "contribuir com o país nesse momento tão crítico da nossa história". Basicamente, o STF defendeu que, ao imunizar por conta própria seus servidores e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), liberaria a estrutura pública para o restante da população.

O STJ fez pedido parecido à Fiocruz, segundo revelou a coluna Radar Econômico, da revista Veja, para imunizar magistrados, servidores ativos e inativos, dependentes, estagiários e colaboradores terceirizados do STJ e do Conselho da Justiça Federal (CJF). Disse que a reserva se deve à "expectativa de grande demanda à rede privada, quando houver a disponibilidade" para compra da vacina.

Questionados pela imprensa, ambos os tribunais afirmaram que não pretendem obter "prioridade" e "preferência" em relação ao restante da sociedade. O uso dessas palavras não é aleatório. Membros do Ministério Público de São Paulo haviam pedido prioridade para vacinação, como foi revelado pelo jornal Brasil de Fato, e levaram uma saraivada de críticas de uma população indignada com fura-filas.

As justificativas dadas pelo STF e do STJ esbarram na realidade.

Em algum momento, vacinas serão encontradas à venda no mercado por empresas que cobrarão um preço bem mais alto do que os contratos fechados com governos. É menos provável que isso comece com as vacinas produzidas pela Fiocruz e pelo Instituto Butantan (Coronavac, desenvolvida pela chinesa Sinovac), que atendem prioritariamente o poder público. Não faz sentido, portanto, que órgãos públicos imunizem funcionários públicos, pagando valores mais altos a laboratórios estrangeiros, com recursos da população, se podem esperar sua vez como o resto da sociedade.

Além disso, os servidores dessas instituições que tiverem mais de 60 anos, contarem com doenças que os tornem mais vulneráveis ao coronavírus e forem profissionais de saúde serão vacinados junto com os grupos prioritários elencados nas primeiras fases do Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19. Os demais funcionários terão, em tese, que esperar junto com o restante da população.

O que os tribunais desejam com a ideia de "reserva de vacina"? Receber a cota relativa ao total de seus servidores sob a "promessa" de ir aplicando aos poucos, acompanhando o calendário de imunização para covid? Ir buscar na porta da Fiocruz um novo lote relativo ao número de servidores que fazem parte de uma nova fase de vacinação fase após fase? Não é apenas pouco prático, mas beira o absurdo.

O que aconteceria se empresas, organizações sociais, times de futebol, clubes de tiro, igrejas, centros espíritas e terreiros, coletivos de canastra e truco, sindicatos de motofretistas e grupos de escoteiros passassem a fazer a mesma requisição, assumindo a própria vacinação? Se todos somos iguais perante à lei, não haveria porque privá-los disso, não?

Os pedidos do STF, STJ e de membros do MP-SP são uma pequena amostra do que deve ocorrer nos próximos meses quando a vacinação começar. Uma parte dos mais ricos deve comprar e aplicar vacinas a preços escorchantes. Mas espera-se uma quantidade nunca antes vista de "carteiradas" das mais diversas autoridades com o objetivo de passar na frente na fila da vacinação pública sob os mais diferentes argumentos.

Da mesma forma, podemos aguardar uma "Festa do Atestado", com pessoas saudáveis comprando declarações médicas de que possuem comorbidades que lhe garantam duas doses de tranquilidade antes da sua vez.

Isso já aconteceria sob um governo organizado e com credibilidade. Contudo, apesar de contarmos com um dos melhores sistemas de imunização pública do mundo, pertencente ao SUS, a gestão Bolsonaro, como um Midas ao avesso, consegue transformar em tragédia tudo o que toca. Essa situação passa insegurança à população, que não tem certeza se seu governo será capaz de levar a cabo tal empreitada de guerra. Até porque já deu mostras que, na verdade, ele é um agente infiltrado do vírus.

Fez bem a Fiocruz que respondeu à demanda do STJ afirmando que "toda a produção será integralmente destinada ao Ministério da Saúde", segundo registro da revista Veja. "Infelizmente, a Fiocruz não possui autonomia nem mesmo para dedicar parte da produção da vacina para a imunização de seus servidores e colaboradores", disse a presidente do órgão, Nísia Verônica Trindade Lima.

A imunização por aqui não será apenas um desafio para garantir a proteção da população contra uma doença mortal, mas também um teste para a nossa democracia e os princípios republicanos que, em tese, a guiam. Quanto tempo a fila resiste antes de virar um queijo suíço diante dos interesses de quem tem poder?

Em tempo: João Otávio Noronha, então presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), negou, no dia 23 de julho, liminar de um pedido de habeas corpus coletivo que transferiria para a prisão domiciliar presos em caráter provisório que sejam idosos ou imunodeprimidos e, portanto, tenham o risco aumentado de contrair coronavírus. Ele havia concedido o benefício a Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, sob a justificativa de que ele estava em situação de risco devido a um tratamento de câncer. Sua esposa, Marcia Aguiar, que estava foragida após ter a prisão decretada, também foi beneficiada sob o argumento de que precisava cuidar dele. Prioridade. Preferência.