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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Dedicado a salvar Flávio, Jair Bolsonaro permitiu 250 mil mortes por covid

Colunista do UOL

24/02/2021 13h25

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Quando te disserem que Jair Bolsonaro é um político incompetente, não acredite. Desde que começou seu mandato, ele conseguiu movimentar as estruturas dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e do Ministério Público para proteger a sua família.

A decisão do Superior Tribunal de Justiça, desta terça (23), de anular a quebra do sigilo bancário e fiscal do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), ocorrida no âmbito da investigação sobre o caso das "rachadinhas", coroa o seu esforço e deve ter desdobramentos.

Como venho dizendo nos últimos dois anos, Bolsonaro sujeitou as instituições à sobrevivência política do seu clã. Botou a mão peluda sobre Coaf, Receita Federal, Polícia Federal. Encantou procurador e magistrado com a possibilidade de serem indicados ao Supremo e deixou deputados e senadores maravilhados com cargos e emendas.

O azar, para nós, cidadãos deste torrão intertropical de chão, é que ele usa essa competência para proteger os seus e a si mesmo. Imagine se tivesse empregado essa capacidade de articulação toda contra a covid-19? Boa parte dos 250 mil brasileiros mortos estariam agora por aí, felizes, gritando "mito!" ou "fora, Bolsonaro!". A questão é que, para termos a vida humana como prioridade, o governo teria que ser outro.

Foram dois anos entre os primeiros indícios de depósitos incompatíveis com a renda do ex-assessor Fabrício Queiroz e a denúncia oferecida pelo MP do Rio contra o senador por desvio de recursos públicos, organização criminosa e lavagem de dinheiro.

Nesse período, o presidente fez o que foi necessário para salvar o filho e, por tabela, a si mesmo. Até porque Queiroz não era o homem de confiança de Flávio, mas de Jair.

O arquivo-vivo se sentiu abandonado pelos ex-chefes e até reclamou que "uma pica do tamanho de um cometa" seria enterrada em seu colo, mas nunca abriu o bico. Chegou a ser preso quando estava muquiado em Atibaia (SP), na casa do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, e passou uma curta temporada em Bangu.

Mas ganhou prisão domiciliar pelas mãos do ministro do STJ João Otávio de Noronha, a quem Jair declarou ser apaixonado, garantindo tranquilidade ao Palácio do Planalto. A decisão de terça deve abrir caminho à sua soltura.

Claro que a defesa de Flávio também soube aproveitar que faltou embasamento ao pedido de quebra de sigilo. O que deve ser didático para o sistema de Justiça brasileiro: crimes importam tanto quanto a forma pela qual são processados e investigados.

Uma pessoa que tenha cometido um delito tem o direito ao devido processo legal. Passar por cima disso, como vimos na Lava Jato pode derrubar o caso e a reputação dos envolvidos.

Por que a esposa de Bolsonaro recebeu R$ 89 mil de Queiroz? E de onde veio esse dinheiro?

Mas mesmo que o risco de um julgamento de Flávio e Queiroz tenha desabado após a decisão, há perguntas que ficarão no ar. A questão deixa de ser jurídica e passa a ser política.

Talvez uma das mais icônicas seja aquela feita por um repórter do jornal O Globo, no dia 23 de agosto do ano passado, sobre os depósitos feitos por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro. Na ocasião, o presidente da República afirmou: "Minha vontade é encher tua boca com uma porrada" ao colega. Logo depois, o chamou de "safado".

A quebra de sigilo bancário de Queiroz mostrou que ele depositou R$ 72 mil na conta da primeira-dama entre 2011 e 2018, conforme revelou a revista Crusoé. Sua esposa, Márcia de Aguiar, colocou mais R$ 17 mil - informação obtida pela Folha de S.Paulo. No total, R$ 89 mil.

De acordo com o MP-RJ, o ex-assessor de Flávio Bolsonaro era o operador do desvio de recursos públicos do gabinete do então deputado estadual. O Coaf havia apontado, em 2018, um depósito de R$ 24 mil de Queiroz para Michelle. Jair prontamente disse que isso era parte da devolução de um empréstimo de R$ 40 mil que ele fez ao amigo de longa data.

No dia 15 de dezembro do ano passado, o presidente afirmou a José Luiz Datena, na TV Bandeirantes, que os cheques foram para ele, não para Michelle, ao longo de dez anos. "Divide aí. R$ 89 mil por 10 anos dá em torno de R$ 750 por mês. Isso é propina? Pelo amor de Deus."

Uma aula de dissimulação política. Ninguém acusou esse dinheiro de ser propina e sim desvio de salários de servidores públicos para as contas da família. E, se isso aconteceu, não importa se foi R$ 1 mil ou R$ 1 milhão - uma vez que o crime se mede pelo fato não pelo valor.

Além disso, o próprio Jair havia dito que tinha emprestado R$ 40 mil e não R$ 89 mil para Queiroz - valores que nunca foram declarados.

Independente de investigações e ações judiciais, um presidente honesto e transparente correria para prestar esclarecimentos decentes e abrir suas contas. Um presidente honesto e transparente.

Essa cobrança pode desaparecer em meio à névoa de insultos, ameaças, agressões, machismos, homofobias, conchavos, tomaladacás, ataques às instituições, golden showers, que turva a República desde Primeiro de Janeiro de 2019.

Cabe à imprensa e à sociedade continuarem perguntando, mesmo que o caso seja encerrado, por que Michelle Bolsonaro recebeu R$ 89 mil de Fabrício Queiroz. E qual a origem desse dinheiro. Mesmo que não seja mais útil para a Justiça, os eleitores de 2022 vão adorar saber.

A questão é se, até lá, o presidente vai usar sua competência para proibir essa pergunta.