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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Sem vacina, vivemos apartheid sanitário, diz liderança médica na Palestina

Artista palestino produz mural alertando sobre a covid em Rafah, no sul de Gaza - Mohammed Abed/AFP
Artista palestino produz mural alertando sobre a covid em Rafah, no sul de Gaza Imagem: Mohammed Abed/AFP

Colunista do UOL

14/03/2021 02h06Atualizada em 15/03/2021 19h37

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"Israel está recebendo elogios e vem impressionando o mundo por ser o país líder em termos de vacinação. Em paralelo a isso, estão dificultando a obtenção de vacinas por palestinos. Houve atrasos desnecessários para entregar 22 mil doses para Gaza e, na Cisjordânia, muito poucas vacinas foram distribuídas. Estamos numa situação de apartheid."

A declaração é da médica psiquiatra Samah Jabr, uma das mais respeitadas acadêmicas palestinas, em entrevista ao UOL enquanto a comitiva do governo brasileiro estava em Israel. Ela visitou o país para entender as razões do sucesso da imunização naquele país e conhecer um spray nasal que, apesar da falta de resultados, conquistou o presidente Jair Bolsonaro.

Responsável pela área de saúde mental do Ministério da Saúde da Palestina, Jabr é professora associada da George Washington University, nos Estados Unidos, fellow do Centro de Ciência e Política da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e consultora do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Vive em Jerusalém, de onde conversou com a coluna, entre um atendimento e outro.

Dados da Johns Hopkins University apontavam, neste sábado (13), para 207.436 casos e 2.255 mortos na Cisjordânia, sob gestão da Autoridade Palestina, e em Gaza, sob controle do Hamas. Segundo Jabr, a proporção de infectados na Palestina é menor do que em Israel pela falta de kits de testes.

E lembra que as recomendações sanitárias são de difícil aplicação em locais como Gaza, onde a eletricidade é intermitente, falta água potável, há grande densidade populacional e moradias precárias e já não havia recursos para garantir a sobrevivência das famílias mesmo antes da pandemia.

"Nós somos uma população mais jovem em comparação à população israelense, mas temos mais doenças crônicas. Aqui, jovens estão sendo afetados, e vêm morrendo por causa da pandemia", afirma.

Samah Jabr diz que Israel está vacinando trabalhadores palestinos que atuam em seu território, mas a motivação é econômica. "Eles não querem parar com a expansão dos assentamentos em função da pandemia. Há pouca preocupação em termos de saúde pública", afirma.

Questionado pela coluna sobre as críticas, o Consulado de Israel em São Paulo afirmou que "as acusações não têm fundamento" e que a responsabilidade pela saúde nos territórios é da Autoridade Palestina. Mas que o governo israelense tem cooperado e que "facilitará a transferência" de vacinas encomendadas pela administração palestina (leia o posicionamento ao final da entrevista).

Como está a situação da pandemia de covid-19 na Palestina neste momento?

Samah - Nossos números são menores em comparação aos dos israelenses, mas isso se deve ao fato de não termos kits de testes suficientes. Além disso, as pessoas evitam revelar quando estão doentes, porque há consequências econômicas para elas e para suas famílias. Se cruzam com alguém que está afetado [pelo coronavírus], isso significa que têm que passar por uma quarentena, e a quarentena será devastadora para eles economicamente porque são pagos em base diária. Então os números que nós temos subrepresentam a realidade.

E como está a situação da vacinação?

Israel está recebendo elogios e vem impressionando o mundo por ser o país líder em termos de vacinação. Em paralelo a isso, estão dificultando a obtenção de vacinas por palestinos. Houve atrasos desnecessários para entregar 22 mil doses para Gaza e, na Cisjordânia, muito poucas vacinas foram distribuídas. Estamos numa situação de apartheid.

A Palestina tem uma autoridade dependente, não é um país soberano, e Israel coloca condições difíceis para os palestinos importarem as vacinas do exterior. Há uma realidade de ocupação. O artigo 56º da IV Convenção de Genebra [1950] obriga Israel, ou qualquer potência ocupante, a se responsabilizar pela nação ocupada quando há uma epidemia. Israel reivindica ser um benfeitor caridoso, mas é uma caridade falsa.

A comunidade internacional está reagindo aos pequenos gestos de Israel (como finalmente ter vacinado os prisioneiros, ou ampliando as vacinas a trabalhadores palestinos em território israelense) como passos maravilhosos, como grandes atos de caridade. Mas Israel deveria ser responsável por fazer tudo o que fosse necessário para prevenir a pandemia entre os palestinos. Os palestinos estão sob ocupação, pois não temos um país soberano ou uma autoridade soberana; não temos controle de fronteiras ou recursos; e palestinos passaram por cortes significativos no apoio do sistema médico por causa do governo Donald Trump.

A realidade da pandemia tem sido igual para todos os palestinos?

Por causa da realidade de fragmentação política e geográfica, temos palestinos com cidadania israelense, palestinos com residência em Jerusalém, palestinos da Cisjordânia, de Gaza... Todas essas pessoas têm diferentes sistemas, servindo-as. É bastante confuso. Foram muito tardias as campanhas de conscientização em língua árabe aos palestinos com cidadania israelense e aos moradores de Jerusalém, que não têm nenhuma cidadania, mas que são residentes "dentro" de Israel.

E qual a situação em Gaza e na Cisjordânia?

Os palestinos vivendo nos territórios palestinos são cinco milhões, três milhões na Cisjordânia e dois milhões em Gaza. Para essas pessoas, Israel dificultou a obtenção de kits [de testagem] no início da pandemia e, posteriormente, a obtenção das vacinas. E não está assumindo nenhuma responsabilidade para fornecer serviços de saúde a estes grupos. Nós não temos controle sobre fronteiras, não podemos decidir quando abrir ou fechar os aeroportos ou se outras pessoas devem vir aos [nossos] territórios.

Em Gaza, a situação é ainda pior, porque não há eletricidade constante, 95% da água não é potável - é salgada ou suja. A pandemia se coloca sobre condições sanitárias já frágeis. Nós somos uma população mais jovem em comparação à população israelense, mas temos mais doenças crônicas. É por isso que a mortalidade por covid nos territórios palestinos atinge média de 50 anos, enquanto na comunidade internacional fica entre 70 e 80. Aqui, pessoas mais jovens estão sendo afetadas, e vêm morrendo por causa da pandemia.

Nos poucos casos em que Israel permite que algumas doações internacionais (do Catar, dos Emirados Árabes Unidos...) cheguem aos territórios palestinos, seja em Gaza ou na Cisjordânia, há muito exibicionismo. Muito enaltecimento por parte da mídia tradicional e da comunidade internacional, que congratula Israel.

Samah Jabr, médica e responsável pela área de saúde mental do Ministério da Saúde da Palestina - Al Jazeera - Al Jazeera
Samah Jabr, médica e responsável pela área de saúde mental do Ministério da Saúde da Palestina
Imagem: Al Jazeera

Vocês receberam doações da Sputnik V, da Rússia?

Sim, e Israel atrasou. Eles criaram obstáculos, então elas ainda não chegaram. Pessoas começaram a ser vacinadas no fim de dezembro, e agora a maioria dos israelenses está vacinada. Enquanto isso, na Cisjordânia, tenho três colegas que morreram nas últimas semanas porque as pessoas ainda estão trabalhando sem a vacina. Aqui, nós estamos vivendo um apartheid sanitário.

Israel tem 40 milhões de vacinas, enquanto os palestinos de Gaza ganharam somente 22 mil, e na Cisjordânia, 12 mil. Mas não é só isso. Posso te mostrar uma imagem que alerta aos palestinos que pratiquem o isolamento social e a quarentena e, se alguém for afetado, deve utilizar quarto e banheiro separadamente. Mas isso não se aplica à maioria dos palestinos. É claro que não se aplica a ninguém em Gaza. Não se aplica aos palestinos em campos de refugiados.

Havia também recomendações sanitárias para dizer às pessoas que ficassem conectadas, que se conectassem com outras pessoas via mídias sociais. Mas a qualidade da internet que temos nos territórios palestinos é muito fraca, não temos 4G, também por decisões políticas israelenses. Não devemos olhar somente para a vacina ou para os testes. As discrepâncias são difíceis de imaginar.

Israel também está fazendo doações a outros países por razões políticas. Isso é uma lavagem de imagem com vacinas. Israel esconde a negligência de suas obrigações como uma potência ocupante em relação aos palestinos e engana a comunidade internacional com algumas doações aqui e ali. Estão fazendo caridade enquanto, de fato, o fazem em troca de privilégios e interesses políticos.

Os trabalhadores que vivem nos territórios palestinos, mas trabalham diariamente em Israel, estão sendo vacinados?

A motivação de Israel para vacinar os trabalhadores palestinos é econômica. Eles não querem que essas pessoas estejam ausentes do trabalho. Eles não querem parar com a expansão dos assentamentos em função da pandemia. Você deveria ouvir os debates bastante racistas entre os políticos israelenses antes da decisão de vacinar os trabalhadores [palestinos], antes da decisão de vacinar prisioneiros. Há pouca preocupação em termos de saúde pública.

Israel quer se abrir, quer acabar com a quarentena. Eles querem acelerar a expansão dos assentamentos, a economia... E eles dependem dos trabalhadores palestinos para isso. É por isso que são favoráveis a vaciná-los logo. Israel aspira a vacinar todos os israelenses, estrangeiros e refugiados dentro do país. Eles querem garantir que ninguém entre sem ter sido vacinado. Eles os veem como cavalos. Eles os querem fortes e disponíveis para o trabalho.

Como ficou o cotidiano desses trabalhadores, principalmente os que atuavam na expansão de assentamentos israelenses em áreas reivindicadas pelos palestinos?

No início, Israel permitiu aos trabalhadores com residência em território palestino que ficassem. Se eles quisessem trabalhar, permaneceriam nos seus locais de trabalho, e não voltariam para casa, porque não queriam que se misturassem. Queriam minimizar as possibilidades de contágio. Isso colocou os trabalhadores palestinos em uma situação bastante frágil. Foram estigmatizados pelos próprios conterrâneos. Os palestinos ficaram bravos com eles, porque vão até os israelenses, trabalham por um mês e, quando voltam para casa, há uma grande chance de estarem infectados.

Como os israelenses queriam que não se locomovessem [até os territórios palestinos], eles costumavam dormir nos mesmos edifícios que eles estavam construindo, em situações devastadoras. Se alguém ficasse doente, as unidades especiais do exército ou os proprietários das construtoras carregariam o trabalhador e o deixariam, muito doente, em um dos pontos de controle (checkpoints). Você pode ler reportagens na mídia sobre trabalhadores que foram despejados em checkpoints palestinos porque começaram a tossir ou a ter febre, suspeitos de contraírem covid.

Como disse antes, os palestinos não têm fronteiras. No início, o vírus chegou até os territórios palestinos por meio desses trabalhadores.

Um dos grupos mais vulneráveis para a covid é a dos prisioneiros palestinos. Você disse que eles foram vacinados?

Essa também foi uma questão muito racista. Houve discussões sobre vacinar apenas os guardas, mas não os prisioneiros. Alguns políticos falaram abertamente em "deixá-los encarar a morte", que seria como uma punição divina. Somente após uma campanha liderada por ONGs de saúde palestinas e outras ONGs nos Estados Unidos e no Reino Unido, eles puderam ser vacinados.

As condições já eram desafiadoras antes da pandemia, com a população sob contínuo estresse. Qual a situação agora da saúde mental em Gaza e na Cisjordânia?

Uma das primeiras instituições que foi fechada ou transformada em centro de atendimento à covid foi o centro de reabilitação para dependentes químicos. Dependentes foram deixados sem tratamento, foram para suas casas, para prisões ou de volta para o consumo nas ruas.

Estatísticas pré-pandemia sugerem que temos 22% das pessoas precisando de intervenção psiquiátrica. Esse é um dado que foi publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em junho de 2019, na revista The Lancet. Eles falam sobre zonas de conflito, o que inclui a Palestina. Há vulnerabilidades preexistentes, e eu acho que quando as pessoas estão mais preocupadas com sua saúde física, há uma tendência a ignorar mais a saúde mental.

Mas nós sabemos que problemas de saúde mental também estão aumentando e se multiplicando em razão da pandemia. Então muito do meu trabalho é de aumentar a conscientização sobre isso e realizar intervenções nos centros de quarentena tanto com as equipes médicas quanto com os pacientes e seus familiares.

Principalmente depressão e ansiedade?

Segundo nossa observação na prática clínica, depressão, ansiedade, hipocondria, estresse pós-traumático... Nos centros de atendimento à covid, nós vimos muitas pessoas com a "psicose da UTI" (ou Síndrome da Unidade de Terapia Intensiva), delírios. Mas, de novo: nós temos um número muito pequeno de equipes médicas especializadas no campo da saúde mental, e um orçamento bastante curto.

No Brasil, houve aumento de casos de violência de gênero e violência doméstica durante a pandemia. Isso ocorreu na Palestina?

As estatísticas nos dão resultados contraditórios. A polícia alega que não houve aumento de violência doméstica ou de violência baseada em gênero. Já ONGs locais dizem que há um aumento de 20% nos relatos de violência baseada em gênero. Se nós assumirmos "boas intenções" por trás dessa discrepância nas estatísticas, talvez o nível de violência não esteja chegando aos olhos da polícia. Claro que no meu trabalho, as observações são de que sim, há um aumento na violência doméstica.

As tarefas para as mulheres se multiplicaram, especialmente quando as crianças ficam em casa, quando os maridos desempregados, frustrados, ficam em casa. Então, além de todas as outras situações difíceis mencionadas anteriormente, agora há também uma retração da economia, o que frustra muito as pessoas. Isso alimenta a violência doméstica de uma forma ou de outra. As mulheres em casa, agora, abandonaram seus trabalhos remunerados. Elas costumavam trabalhar em restaurantes, em hotéis, no turismo. Compõem a maioria daqueles que perderam empregos.

As tarefas se multiplicam, mas sem remuneração, então isso é também frustrante para elas. Têm que ser professoras para suas crianças, que ser terapeutas para seus maridos frustrados, para além das tarefas que faziam normalmente. Eu também estou preocupada com as trabalhadoras da saúde. A maioria dos trabalhadores da saúde na Palestina, que estão na linha de frente, são mulheres. Enfermeiras e técnicas de laboratórios são mulheres, enquanto a maioria dos administradores no sistema de saúde são homens. Ser uma mulher durante a covid, bem como ser uma trabalhadora da saúde, é algo muito pesado.

Posicionamento do Consulado de Israel em São Paulo

O Consulado de Israel em São Paulo afirmou que a responsabilidade pela saúde nos territórios palestinos é da Autoridade Palestina. E disse que Israel tem cooperado com a Autoridade Palestina desde o início da crise "devido aos interesses da própria população israelense", especialmente pelos trabalhadores que entram em Israel, mas também por questões humanitárias.

Também disse que a Autoridade Palestina encomendou centenas de milhares de vacinas, com assistência da Rússia, China e da Covax, e que Israel facilitará a transferência do produto. E que "Israel está coordenando a transferência de amplo equipamento médico para o controle de vírus tanto para a Autoridade Palestina quanto para Gaza".

Afirmou que Israel transferiu 5 mil doses de vacina para a Autoridade Palestina para imunizar equipes médicas, que a campanha incluirá a imunização de cerca de 120 mil trabalhadores palestinos e que, atendendo ao pedido da Autoridade Palestina, Israel ajudou na transferência de 2 mil vacinas Sputnik V para Gaza.

Em relação à reclamação de que trabalhadores palestinos foram deixados em checkpoints, o consulado afirmou que "é uma acusação sem sentido" e que em qualquer lugar do mundo, se uma pessoa tiver sintomas, a recomendação é de isolamento.