Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Não é frio que mata em SP, mas especulação imobiliária e ausência do Estado
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Nós, paulistanos, gostamos de imaginar que somos um povo acolhedor dada a profusão de sotaques, cores e origens que fazem parte de nossa formação. Mas, nessa cidade acolhedora, é possível morrer de frio e o cadáver permanecer sem ninguém se curvar para verificar se aquele amontoado de pano passa bem. Se precisa de algo. Ou se ainda respira.
Não é que a cidade respeite tanto a individualidade de cada um a ponto de não interferir em seu espaço pessoal. Ela só enxerga a parte mais vulnerável da população quando esta agride, com sua existência, o senso estético de um conceito equivocado de cidade linda. O que não é de hoje. São Paulo, como toda grande cidade do continente americano, recebeu os mais pobres que vieram construi-la com os braços abertos - chicote em uma mão e leis injustas na outra.
As coisas melhoraram com o tempo, mas o respeito à dignidade e, dentro dele, o direito à moradia ou à assistência social vão avançando muito lentamente. Graças a pessoas como o padre Júlio Lancelotti e a Pastoral do Povo de Rua, os insistentes movimentos por moradia e os servidores que, na contramão do resto do poder público, fazem seu dever.
Mas a falta de atendimento decente e suficiente para pessoas em situação de rua e de uma política de moradia que privilegie os seres humanos e não os ratos e baratas dos prédios fechados pela especulação imobiliária mostra que vai morrer muita gente ainda.
Toda vez que a porta do freezer abre em São Paulo, lembro da quantidade de imóveis que têm como inquilinos ratos e baratas enquanto há pessoas morrendo do lado de fora. Ou gente que dorme em barracos, cortiços e habitações precárias que deixam o frio entrar.
A Secretaria Municipal de Assistência Social de São Paulo tem avançado em boas políticas de aluguel de hotéis e pensões para acolher quem nada tem, mas isso ainda é pouco.
O déficit qualitativo e quantitativo de habitação poderia ser drasticamente reduzido se imóveis trancados por portas de tijolos e terrenos vazios pudessem ser desapropriados pelo poder público e destinados a quem precisa - gratuitamente, na forma de aluguel social ou a juros abaixo do mercado, dependendo das necessidades e do nível de pobreza.
Mas quando se discute a necessidade de radicalizar os programas de moradia popular, aparece aquela frase que prova que o tiktaalik não deveria ter deixado a água a 375 milhões de anos: "Tá com dó? Leva pra casa!"
A frase é um clássico da internet. Proferida ad nauseam quando o tema é a vida enfrentada pela gente pobre, abandonada, drogada e prostituída que atrapalha a imagem que São Paulo tem de si mesmo. Ignoram que não é levar o povo para a casa, mas fazer com que União, Estado e município cumpra sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma.
Um homem em situação de rua morreu nesta quarta (18), ao que tudo indica por causa do frio. Isaías de Faria tinha 66 anos e havia passado a noite na rua em uma madrugada que registrou menos de 6º C e sensação térmica mais baixa ainda. Estava, naquele momento, em um núcleo de acolhida, mas não resistiu. Não será o único.
Quando o frio exterior é muito forte, o hipotálamo no nosso cérebro perde a capacidade de manter nossa temperatura - que, normalmente, permanece na casa dos 37° Celsius. As reações químicas relacionadas à manutenção da vida precisam de calor. Sem ele, músculos vão parando, a respiração e a circulação sanguínea diminuem, a sensibilidade some com o freio do sistema nervoso. A consciência vai se dissolvendo. Tudo até o coração parar de bater.
Essas reações químicas se repetem todos os anos.
Na esquina da rua Teodoro Sampaio com a avenida Doutor Arnaldo, um homem foi encontrado morto, em uma tarde de terça, há cinco anos, em meio ao frio que atingia São Paulo. Informada no meio da tarde por um telefonema ao 190, a Polícia Militar não encontrou sinais de violência. A temperatura média na cidade, às 15h20, era de 9,3°C.
O corpo permaneceu um longo tempo até que alguém notasse o que havia acontecido. Essa história não me abandona porque eu passava cotidianamente por aquela esquina e, por isso, trouxe ela novamente para este texto.
Ao saber dessa notícia, fui tomado por uma tristeza insistente. Não pela culpa de não ter passado por lá naquele dia, mas pela dúvida: se tivesse passado, eu teria sido humano o suficiente para parar e ir perguntar se estava tudo bem, como já fiz antes? Ao menos ligaria para avisar um órgão público? Ou seguiria em frente, pensando em um milhão de coisas mais importantes da minha vida que, na verdade, são menos relevantes do que uma vida?
As perguntas dizem bastante sobre a nobreza de uma sociedade, que se orgulha de sua tolerância com as vidas que acredita não valerem nada. Contanto que elas não atrapalhem esteticamente a realidade. E não façam barulho ao sair.