Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Mais uma criança baleada no Rio? É branca e rica? Não? Então, segue o jogo
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Se a menina negra, de quatro anos, atingida na cabeça em meio a um confronto entre policiais civis e criminosos quando comprava pipoca com a mãe na saída da escola, na zona oeste do Rio, nesta quarta (1), fosse branca e rica e vivesse no Leblon, cabeças já teriam rolado no governo fluminense, todo o aparato midiático estaria disputando entrevistas sobre o caso e centenas de pessoas uniformizadas de branco pedindo paz fariam vigília em frente ao Hospital Miguel Couto, local em que foi operada.
Mas balas perdidas (sic) são uma tragédia apenas quando atingem quem não é tratado como descartável. Ainda mais quando parte da sociedade, a que detém os poderes político e econômico, avalia que a guerra de contenção travada nas comunidades pobres é justificável, desde que não respingue nos "cidadãos de bem".
Em outras palavras, o problema seria morrer criança rica e branca. Pobre e negra? É baixa de guerra. Bota na conta do papa e segue o jogo.
Você se lembra do rosto de Marcos Vinícius da Silva, assassinado, ainda de uniforme escolar, durante uma ação policial no Complexo da Maré? E o de Ágatha Vitória Félix, de oito anos, morta com um tiro de PM quando voltava para a casa com a mãe no Complexo do Alemão? E o de João Pedro Mattos Pinto, que morreu durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil em São Gonçalo (RJ)?
Como construir um futuro se a maioria de nós já nem se lembra dos cadáveres de crianças negras mortas durante ações da polícia que nos chocaram recentemente? Como um país quer ser decente se há pessoas que comemoram ações desastrosas da polícia que realizam chacinas nas periferias, e depois se enrolam em bandeiras do Brasil para protestar por democracia? Como um presidente da República defende que mortos pela polícia são culpados até que se prove o contrário?
Para uma parte dos brasileiros, que apoia ações em comunidades sem um mínimo de preparação e inteligência a fim de evitar o sofrimento de civis, a culpa de mortes é das próprias vítimas. Se alguém morre é porque "alguma coisa ela e sua família fizeram de errado".
Sim, para muita gente, eram Ágatha, João Pedro e Marcos Vinícius que estavam no "lugar errado e na hora errada". Na verdade, em nossa sociedade, ainda circula impune a ideia de que há pessoas que nasceram com a "cor errada".
Quem nasce com a cor errada, aliás, perde até o direito a respirar. Como foi o caso de Genivaldo de Jesus Santos, morto em uma câmara de gás improvisada por policiais rodoviários federais em Umbaúba (SE) ou de João Alberto Silveira de Freitas, assassinado em uma unidade do supermercado Carrefour em Porto Alegre na véspera do Dia da Consciência Negra ou de Pedro Henrique de Oliveira Gonzaga, morto após uma gravata dada por um segurança do supermercado Extra, na Barra da Tijuca, Rio.
Com algumas variações, essas mortes se repetem, e repetem, e repetem, já fazendo parte da paisagem de um país definido pelo racismo em todos os níveis de suas relações sociais. A diferença é que, nos últimos anos, as agressões, que sempre ocorreram, podem ser assistidas por milhões nas telas de seus celulares, o que permitiu a punição de agentes de segurança.
Isso ajuda a diluir a violenta mentira do "não existe racismo" ao passo que faz com que muitos se reconheçam no "já aconteceu algo semelhante comigo".
Como já disse aqui, sem demérito para outras pautas sociais e políticas, histórias como essas seriam razão mais do que suficiente para pararmos as ruas do país em protesto. Contudo, para muita gente, a morte e a tortura de pessoas negras pelas mãos do Estado ou da iniciativa privada não vale o arranhão deixado na caçarola por uma noite de bateção de panelas. Esse racismo não é um acidente, mas parte de um projeto que é violento com a população negra e pobre em nome da manutenção de nossos privilégios.
É claro que não há ordens diretas para atirar em crianças negras, como ontem, pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. Ensinamos agentes de segurança em grandes metrópoles a ir para a guerra. E que comunidades pobres não são bairros onde a esmagadora maioria das pessoas quer paz para viver, brincar e trabalhar, mas campos de batalha onde se esconde o inimigo. E o inimigo precisa ser derrotado a qualquer custo. Seria o mesmo que um "tratamento" matar o próprio paciente, mas, neste caso, os beneficiários dessa política não moram ali.
O Brasil é um capataz que parece apreciar muito o seu trabalho. Tanto que uma das únicas certezas é que o sofrimento e a morte continuarão sendo permitidos num país que tornou a contagem de corpos negros uma tarefa do cotidiano.