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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Conto de fada eleitoral de R$ 600 vira 'abóbora' de R$ 405 na virada do ano

Colunista do UOL

01/09/2022 10h07

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Às 12 badaladas da meia-noite de 31 de dezembro, o pagamento de R$ 600 acaba e o Auxílio Brasil voltará oficialmente a ser uma abóbora de R$ 405, mostrando que tudo não passou de um conto de fadas de mau gosto. Isso não é ficção, mas está no próprio planejamento do governo enviado ao Congresso.

Atrás nas pesquisas, Jair Bolsonaro conseguiu aprovar a toque de caixa um aumento temporário no Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, de agosto a dezembro. Foi a maior ação de compra de votos institucionalizada que a Nova República já assistiu.

Poderia ter feito isso desde o ano passado para aplacar a fome de 33 milhões de brasileiros? Poderia, mas não era eleitoralmente vantajoso. E para tanto o governo precisaria ter uma política social estruturada e não um arremedo de medidas visando à reeleição da grande imobiliária que está no poder.

Agora, nas previsões para o orçamento de 2023, Jair previu um valor de R$ 405. Diante da promessa de Lula de manter o benefício em R$ 600, ele fez o mesmo. E para amenizar o descaramento que aponta o abismo entre a promessa de campanha e a prática, mandou uma mensagem aos parlamentares dizendo que vai procurar recursos para garantir a manutenção do valor atual.

E diante das críticas da oposição disse a empresários, nesta quarta (31), que vai vender estatais (como Petrobras, Correios...) para pagar o benefício. Ou seja, pretende vender o fogão para garantir o almoço, provando que seu governo não tem projeto algum. As coisas vão acontecendo e eles correndo atrás do prejuízo.

Dois terços do país sabem que R$ 600 é valor eleitoreiro

O pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 ainda não se traduziu em votos para o presidente Jair Bolsonaro como ele esperava ao buscar a aprovação da PEC da Compra dos Votos. Uma das razões para isso é que 81% dos mais pobres não sentiram o preço dos alimentos baixar, segundo a última pesquisa Genial/Quaest.

Os mais pobres ainda não tiveram a chamada percepção coletiva de melhora da qualidade de vida. Não é a chegada dos R$ 600 às contas individuais dos beneficiários que muda o voto, mas as famílias sentirem que a vida delas e de sua comunidade está de fato melhor. E, ao que tudo indica, isso ainda não ocorreu.

A Quaest aponta que 63% avaliam que as medidas econômicas tomadas por Bolsonaro têm o objetivo de ajudar em sua reeleição e 66% sabem que o benefício é temporário e, a depender do orçamento aprovado pelo presidente, volta para o patamar anterior em janeiro.

Para mudar esse quadro, Bolsonaro tem a tarefa de convencer a população que Bolsonaro não fala sério quando previu apenas R$ 405 em 2023. O inacreditável não é ele tentar fazer isso, mas que teremos brasileiros que acreditarão.

Governo deixou país sem auxílio no pico da pandemia

Quando o governo federal interrompeu o pagamento do auxílio emergencial em dezembro de 2020, Jair Bolsonaro, seus ministros e aliados no Congresso foram avisados de que isso levaria à fome e à morte. Mas empurraram com a barriga.

Diante das cobranças, o ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a vir a público explicar que a contagem de corpos não havia chegado ao patamar para disparar uma resposta do governo. "Se a pandemia faz a segunda onda, com mais de 1500, 1600, 1300 mortes, saberemos agir com o mesmo tom decisivo como agimos no ano passado, mas temos que observar se é o caso ou não", afirmou.

Era janeiro de 2021 e já estávamos na segunda onda, com mais de mil mortes por dia - situação que escalaria para quatro vezes mais em abril. Naquele momento, o presidente mandava todo mundo voltar às ruas para trabalhar, explicando que "a morte é o destino de todos", enquanto pessoas sufocavam em hospitais lotados.

Mesmo com a realidade empilhando cadáveres, o governo demorou 96 dias para retomar o pagamento do auxílio emergencial. Consequentemente, a falta de recursos para subsistência ajudou a sabotar o isolamento social em meio à escalada de mortes. E gerou fome. No final de 2020, o país tinha 19 milhões de famintos. No início de 2022, eles passaram a ser 33,1 milhões.

No meio da carestia, o governo Bolsonaro tentou usar a necessária renovação do auxílio para desvincular as receitas da União, acabando com os gastos mínimos obrigatórios em educação e saúde, conforme prevê a Constituição.

"Quer criar o auxílio emergencial de novo, tem que ter muito cuidado, pensa bastante. Porque se fizer isso não pode ter aumento automático de verbas para educação, para segurança pública", disse Guedes a uma plateia de investidores e empresários em 26 de janeiro de 2021.

Considerando que os principais beneficiários de serviços públicos não são os mais ricos, uma medida como essa significaria, na prática, tirar dos pobres para dar aos paupérrimos. Não por coincidência, mas por método, isso tem o mesmo DNA de "Robin Hood às avessas" que está presente no projeto bolsonarista que reduziu o ICMS dos combustíveis, tirando da educação e saúde.

No dia 4 de fevereiro do ano passado, Guedes insistiu, condicionando o pagamento de novas parcelas do auxílio emergencial à criação de "um novo marco fiscal, robusto o suficiente para enfrentar eventuais desequilíbrios". Isso foi visto não apenas como insensibilidade diante da realidade dos mais pobres na pandemia, mas também como uso político da fome.

A chantagem pegou tão mal que o então recém-empossado presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG) o contradisse, afirmando que "não podemos condicionar a realização disso, a entrada em vigor de medidas desse tipo [auxílio], porque a emergência e a urgência relativamente a essa assistência social não podem esperar".

Os R$ 600 sobreviverão a uma vitória do bolsonarismo?

Se 2021 fosse ano eleitoral, o governo teria tentado uma manobra como a que faz hoje, atropelando as regras eleitorais para criar às pressas um aumento de R$ 200 no Auxílio Brasil.

A maioria dessas ações foram propostas pela oposição ainda no ano passado, mas como Bolsonaro não achava que estaria tão atrás de Lula nas pesquisas, nem que os pobres dariam tanto apoio ao petista, o governo não se preocupava em garantir um colchão de proteção aos mais vulneráveis. Até agora.

É claro que os mais pobres precisam ser protegidos neste momento, e o aumento precisava acontecer - o governo conta, aliás, com o fato de que a maioria dos parlamentares, seja por consciência, seja porque querem ser reeleitos, votaria pela proposta.

Mas é republicano lembrar que a proposta não nasce para garantir o fim do desespero de famílias, isso pode ser consequência, não motivo. Ela tem como objetivo tentar reduzir o desespero eleitoral do bolsonarismo.

E quando esse desespero passar, podemos voltar ao que era antes. Ou seja, o cada um por si e Deus acima de todos.